sexta-feira, 9 de maio de 2014

Relação entre literatura e história

Tereza Ramos de Carvalho

Para Paul Veyne[1], a história é, em essência, conhecimento por meio de documentos. E a narrativa histórica situa-se para além de todos os documentos, uma vez que nenhum deles pode ser o próprio evento, e citá-la textualmente produz um efeito literário, destinado ao ethos – à intriga, aproximando assim a história escrita da história romanceada na ficção. Para Veyne a história interessa porque narra, assim como o romance. E esse processo narrativo apresenta uma reflexão do historiador além da historicidade, conferindo à história um caráter literário, assim como o texto literário reflete um dado momento histórico.

Veyne discute a história observando sua relação com o romance. Segundo ele, a história é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso. Já que é, de fato, uma narrativa, a história não faz reviver esses eventos, assim como tampouco o faz o romance. Como o romance, a história simplifica, organiza, sintetiza, e essa síntese da narrativa é tão espontânea quanto a da nossa memória quando evocamos o passado. O que os historiadores nominam evento é apreendido de maneira incompleta e lateralmente por documentos ou testemunhos, por tekmeria, (indícios). A interpretação dos acontecimentos é sempre feita em diferentes perspectivas: a do ator, a do amigo, a do expectador, a do confessor, a do historiador, etc. A narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento. A história é diegesis[2]  e a literatura mimesis.

Peter Burke[3]discute as mudanças ocorridas na historiografia a partir do surgimento da chamada Nova História. Esta se preocupa em analisar as estruturas, a história de cima, de baixo e de outros ângulos possíveis. Para isto, vários novos temas da história, entre eles, a história das mulheres, o renascimento da narrativa, a história oral, merecem destaque. Para a Nova História, tudo é histórico, enquanto a História tradicional olha de cima, pensa na história como narração de grandes fatos.

Para Burke, a Nova História diferencia-se da tradicional em seis pontos: o paradigma tradicional diz respeito somente à história política, a Nova História preocupa-se com uma história total, onde tudo é histórico; a história tradicional pensa na história como narração dos grandes fatos, a nova preocupa-se em analisar as estruturas; a tradicional olha de cima, e a nova história olha de cima, de baixo e de outros ângulos possíveis; documentos oficiais são os que interessam ao paradigma tradicional. O paradigma da Nova História aceita qualquer espécie de documento; o historiador tradicional explica por meio da vontade do indivíduo histórico; a Nova História preocupa-se com os movimentos sociais, as tendências; e, finalmente, o paradigma tradicional considera a História uma ciência objetiva, e o paradigma novo não crê na possibilidade de uma objetividade total.

Hayden White[4] apresenta a ideia de que todas as narrativas históricas pressupõem caracterizações figurativas dos eventos que pretende representar e explicar. Para ele há uma relação da narrativa histórica com o discurso literário, isto é, as narrativas históricas são ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com seus equivalentes na literatura do que com seus correspondentes na ciência.  Para ele, o discurso histórico não se opõe radicalmente ao discurso mítico, pois o próprio discurso do historiador é formado por diferentes tipos de mitos históricos: como românticos, trágicos, irônicos.

Desse modo, Hayden White complementa as ideias de Burk e Veyne ao afirmar que a história é também artefato literário. Isto porque toda narrativa histórica ou não, apresenta sempre mais de um lado: o de quem conta, o lado de quem ouve e a invenção, a subjetividade no processo narrativo. Essa subjetividade depende do ponto de vista de quem narra; de como se imagina/inventa uma realidade não vivida, apenas contada, como parte da oralidade das comunidades.

Beatriz Sarlo[5] define essa realidade não vivida de “pós-memória”: lembrar o vivido ou lembrar narrações ou imagens alheias. Para Sarlo, fatos que não foram diretamente experimentados, ou os discursos da pós-memória renunciam a totalização não só porque nenhuma totalização é possível, mas porque eles são destinados essencialmente ao fragmento.

De acordo com Francisco Foot Hardman[6], a literatura da margem pode ser o lugar de questionamento do trágico, história das autonomias, a busca da unidade perdida numa sociedade do esquecimento e a produção das ilusões coletivas.


Tensões entre histórias locais e textos literários


O passado é inevitável e acontece
independentemente da vontade e
da razão. Beatriz Sarlo

 
O texto literário pode ser contextualizado a partir da observação dos tecidos residuais, porém nem sempre conseguimos conhecer a totalidade do interior dessa urdidura. Mesmo que se tenha um texto referencial que apresente as fronteiras do contexto literário sobre o mesmo evento, é preciso lembrar que há fronteiras que limitam ou mesclam realidade e ficção.  Às vezes parece difícil visualizar essas fronteiras na obra de ficção considerando o realismo presente no texto. E o contexto pode ser entendido como testemunha, mesmo que seja testemunha da memória do vivido ou do ouvido na infância, ou da memória coletiva. Assim o escritor ao associar o texto ao contexto, num só tempo, explica o sentido da obra e promove o retorno ao tempo real.

Sabemos que o texto literário apresenta sempre um resíduo, algo que por mais que o autor tente explicar, as palavras não dão conta de traduzir. Sempre há na obra, um lado referencial do discurso que é relativo à história, ao contexto, portanto traduzível e o domínio plurissignificativo, aquele carregado de sentidos, às vezes intraduzível.  Partindo dessa perspectiva do “intraduzível” que segundo Wilheim von Humboldt[7] é a “forma interna do texto” vamos perseguir a ideia de identificar esse hibridismo nas narrativas de O tronco, Serra dos Pilões e Quinta-feira Sangrenta (Os barulhos do Duro)

Bakhtin[8] considera que a literatura deve ser estudada a partir do contexto em que foi criada e não apenas nesse contexto, pois para compreender e explicar o sentido de uma obra deve-se romper as fronteiras de seu tempo assim como o fazem as grandes obras.

As narrativas de Quinta-feira Sangrenta, Serra dos Pilões e O Tronco são substratos dos eventos sociais e de eventuais observações além de relatos orais e lembranças da memória conscientemente elaborados pelos autores a partir dos eventos históricos. Por essa razão, é importante percebê-las como construções do imaginário, mas que podem ser vistas como um reencontro com a história das ruínas de um passado não muito distante.

Francisco Foot Hardman[9] reabre a discussão sobre tantos pontos e traumas recolhidos de histórias que foram silenciadas, e das que foram incorporadas apresentando linguagens desprovidas de sentido, de forma que os espectros conciliados pela nação sorriem de suas próprias invenções / mentiras; são pontos extremos das fronteiras discursivas que criaram modos de produção de ilusões coletivas que por sua vez são responsáveis pelo efeito de “fantasias de Brasil” que se apresenta nas lutas sociais e guerras culturais e se entrecruzam de muitas maneiras, por vias simultâneas com várias linguagens e/ ou diferentes códigos de comunicação. Essas linguagens promovem unificações forçadas contra as diferenças socioculturais que, ou serão eliminadas da memória ou cristalizadas como figurações de um passado já suplantado. Assim cabe à maquina do Estado o apagamento da “cultura brasileira”, dos pontos extremos das fronteiras discursivas geográficas e históricas desses mitos do ser nacional feitos para se comungar.

Esse processo pode originar-se de três modos relevantes de produção dos mitos de fundação nacional e da naturalização do poder estatal: o eixo monumental ou a monumentalização das ruínas, produção de símbolos e construções reveladoras do poder aparente da civilização a apresentação dos discursos e ações estatais, inclusive de seus aparelhos ideológicos. O eixo monumental direciona-se desde a metrópole ou pólo urbano rumo ao sertão, campo ou região mais afastada dos grandes centros civilizacionais. De forma inversa o culto das ruínas ou o eixo delével se caracteriza pelas intervenções violentas de indivíduos, grupos e / ou políticas públicas no sentido do silenciamento completo de vozes ou línguas diferentes do monolinguismo do Estado e de seus porta-vozes, da desaparição de qualquer memória ou testemunhos das dissensões e desdobra-se na direção contrária, da fronteira político-administrativa mais remota ao grande centro de poder, medido em palavras, imagens e/ou armas com capacidade de impedir que as memórias incômodas possam reaparecer como provas comprometedoras. E entre esses dois movimentos polares localiza-se o eixo elegíaco ou ruiniforme, que produz simbolicamente marcado pela forte presença de discursos, rituais e atualizações que têm como motivo central o elogio das ruínas, a representação de um passado heróico perdido, o culto fúnebre e tantas vezes mórbido dos povos, grupos ou pessoas vencidas em batalhas assinaladas como histórica. Pode-se entender o eixo monumental como uma imposição que se desloca do centro à periferia, já o eixo delével, ao contrário, como uma forma popular, desloca-se da fronteira produtiva ao centro e o eixo elegíaco localiza-se entre os dois para produzir o discurso simbólico dos dois eixos.

Segundo Todorov[10] (sic) “duas visões diferentes do mesmo fato fazem deste dois fatos distintos”. O autor de Quinta-feira Sangrenta ou Os barulhos do Duro descende da família Wolney e se propôs à tarefa de pesquisar e publicar parte da memória histórica da ruína de sua Vila. Os fatos são narrados com uma forte subjetividade por parte do autor que a justifica pelo fato de, além de ser nativo da região, descende da família massacrada no tronco. Observa-se esse envolvimento do autor com o evento logo no início, na nota explicativa, quando diz ser o trabalho uma homenagem aos seus avós João Rodrigues de Santana e Benedito Pinto de Cerqueira Póvoa, aos seus filhos e demais companheiros de infortúnio; ao coronel Joaquim Aires Wolney e à antiga Vila de São José do Duro”. O tema ali tratado assemelha-se aos temas universais, que por sua vez nasceram em suas aldeias e se universalizaram. Já em O Tronco Bernardo Élis utiliza o mesmo expediente local para tratar o tema da violência como consequência da ambição humana. O mesmo fato é narrado em duas versões diferentes: aquela, segundo o autor, como história e esta como ficção.

Os dois modos de produção apresentam o discurso localizado no modo ruiniforme ou elegíaco. Ao prefaciar Quinta-feira Sangrenta, Élis apresenta-nos também o mote de sua obra O Tronco:

Os barulhos do Duro – era assim que se designavam as lutas desencadeadas no distante povoado de São José do Duro, hoje Dianópolis, nos limites de Goiás com a Bahia. Não sei se é lembrança própria ou produto de conversas de familiares, pois eu teria cerca de três ou quatro anos de idade, mas parece que tenho recordação de soldados e civis passando por Corumbá, vindo do distante Duro, fugindo às lutas que ali se instalaram, todos maltrapilhos, doentes feridos, destroçados e infelizes. De par com isso, os comentários dos acontecimentos..” (Os barulhos do Duro, pag. 6)
                                                                                                                 

Os discursos literários desses autores têm caráter heterogêneo, uma vez que eles conscientemente os preenchem de palavras do outro[11].  Observando as datas de publicação dessas narrativas, o tema, o contexto e as semelhanças factuais, pode-se dizer que Osvaldo Rodrigues Póvoa dialoga com Élis como “historiador” do mesmo evento. De acordo com Todorov[12] pode-se afirmar que Póvoa, para evoluir como escritor de Quinta-Feira Sangrenta, dependeu de palavras alheias, em meio às quais procurou seu caminho. Portanto, seu texto habita nas vozes de Élis, assim como na narrativa de Élis habitam vozes de Póvoa.

Nesse sentido, pode-se afirmar que há uma ressonância entre as narrativas do corpus uma vez que em cada obra encontramos muitas informações que preenchem as lacunas deixadas pelas outras leituras. Cada narrativa se completa de informações das outras como numa trilogia que se fecham num ciclo. Para Bernardo Elis analisa que os barulhos do Duro são o reflexo da cultura nordestina em Goiás, na parte que nosso estado confina com a Bahia. (Quinta-feira Sangrenta, pag. 8). Ou seja, no final do século XIX e início do século XX, o norte do estado de Goiás, era vulnerável aos desmandos dos coroneis que utilizavam serviços dos profissionais do crime – jagunços e cangaceiros.

O leitor desavisado, ao entrar em contato com O Tronco (1956) sem conhecer os Barulhos do Duro (1975), que é o contexto da obra verá apenas mais um romance bem imaginado, estruturado de forma linear, explorando a arrogância de políticos injustos, e por extensão muitas tensões sociais semelhantes às de Os Sertões de Euclides da Cunha. B. Élis explica que essas tensões, que ele  as nomeia de barulhos do Duro, além de preencherem grande parte de sua infância e adolescência, despertaram críticas à situação geral do país, do isolamento da periferia, só lembrada à época de eleições, ou para arrecadação de impostos ou recrutamento para o exército. Assim surgiu no autor a “vontade de reconstruir esse enorme drama...” que não nasceu apenas dos relatos e de sua memória, conforme explica:

...Inicialmente, vali-me do trabalho de Gulherme Ferreira Coelho “Expedição histórica ao Norte de Goiás – S. José do Duro”, que informa sobre o acontecimento. A seguir, estimulado por influências populares, pretendia fazer um estudo sociológico e para tanto tratei de colher material informativo de cunho geográfico histórico, sociológico, político, econômico e financeiro... não satisfeito comecei a me informar das pessoas que tinham participado do evento ou que havia morado na região, ouvindo e anotando depoimento de perto de cem pessoas.

      
[...] todo membro de uma comunidade falante encontra palavras habitadas por outras vozes


Percebe-se que o processo de criação de uma obra literária parte de um longo trabalho de pesquisa de campo, pesquisa bibliográfica, pesquisa histórica e na tradição oral, e que pode ser entendida como o real mais ou menos imaginado, que justifica a origem da obra. E o autor confessa que “foi nesse processo de conversa com participantes que pôde perceber toda a intensidade com que falavam do caso.” Segundo Élis, o comportamento e a sensibilidade das pessoas ao recordar os fatos o comoveram tanto que acabou sendo dominado pela emoção. Assim nasce o romance e não mais o tratado sociológico anteriormente proposto pelo autor. Não conseguindo mais isentar-se do drama humano o documentário acaba sendo substituído pelo romance; o autor passa a recriar o evento histórico, e promove um retorno às memórias e às ruínas do passado, assim o fez Osvaldo Rodrigues Póvoa, não como romancista, mas como historiador do mesmo episódio, vinte anos após a publicação de OTronco. Se a história social não se apresenta com linearidade, podemos afirmar que a história literária não se obriga a ser. Cabe, portanto, ao crítico observar as relações dialógicas entre os eventos históricos e literários. Para melhor compreensão da linearidade dessa trilogia como ilusão histórica ou artefato literário deve-se iniciar as leituras por Serra dos Pilões, seguida de Quinta-feira Sangrenta e encerrar com O Tronco. Exatamente o caminho oposto de suas produções.

E em Serra dos Pilões, Moura Lima retoma a palavra para reabitar ou preencher a lacuna deixada por Bernardo Élis e Osvaldo R. Póvoa, apresentando a gênese dos personagens protagonistas das demandas que deram vozes às três narrativas, os elementos que faltavam para completar o circulo dessa trilogia histórica trágica: os jagunços e os cangaceiros vindos dos estados do Nordeste que fazem fronteiras com o norte do estado de Goiás, atual Tocantins que, posteriormente migraram para a Vila do Duro. Alguns vieram para atender aos chamados dos coroneis, outros seguiam as trilhas dos tropeiros com seus animais que arribavam do Nordeste, fugindo da seca e dos muitos problemas sociais.

Serra dos Pilões revela-nos o terror vivido pelos sertanejos pacíficos e indefesos do norte goiano, em face dos ataques dos mesmos bandoleiros sanguinários que participaram do evento que resulta na tragédia de São José do Duro em 1919: os cangaceiros/jagunços de Serra dos Pilões quase todos morreram na emboscada organizada por Cacheado. Na leitura do capitulo 41 da obra percebe-se que o chefe desse grupo continua no comando. Eram os jagunços comandados por Abílio Batata, ou Abílio Araújo na disputa pelo poder com outro bando comandado por Roberto Dourado e Joca Netário, que dominavam toda a zona fronteiriça da Bahia. Segundo Francisco de Brito, da Academia Goiana de Letras:

Serra dos Pilões resgata do esquecimento essa época de crueldade de um passado não muito distante, suavizando o relato negro dos fatos com episódios que ilustram a bravura ingênua do sertanejo. (...) Sua leitura é chocante; porém a culpa não é do autor, que não poderia pintar o inferno com as cores suaves que se pinta o céu.[13]


Para Paul Veyne, a vida cotidiana de todos os homens é matéria para o historiador, pois mesmo que a história não deva tornar-se história da vida cotidiana, é no quotidiano do homem que pode refletir a historicidade. 
Os eventos históricos do Brasil no que diz respeito ao processo de povoamento/colonização do interior, principalmente nas regiões Norte e Nordeste nos revelam as marcas do atraso e de estagnação, da violência e do desrespeito à dignidade humana.

Para Hardman a história constitui essencialmente numa sucessão de ruínas precoces como narrativa materialmente dramática de brutalidades. Quanto à história construída sobre ruína, Kothe[14], apresenta a visão de Benjamin:

Tanto como ruína quanto como alegoria, a obra de arte participa duplamente da história social, e duas vezes dela também se afasta. Em outra época de gênese, a obra, sendo o outro, o outro que poderia ter sido e não foi, mostra o sido como mera ruína das potencialidades não concretizadas pela e na história. A obra de arte é, então, a alegoria que mostra a História como ruína.  Depois, no tempo da leitura, em relação ao seu tempo de gênese, a obra também testemunha o sido, como resto e legado do que foi... Como ruína alegórica a obra testemunha o sido e o não sido.

O contexto dessas obras permite-nos observar que elas são além de documentos históricos uma forma de historiografia a partir das ruínas, uma vez que a história oficial sobre tais eventos ainda é incipiente. Nesse caso a literatura passa a ser a “historiografia inconsciente[15]”, pois utiliza os eventos sociais não como foram, mas como supõem que foram ou que poderiam ter sido. E esses eventos para configurarem nas narrativas, tanto históricas quanto literárias, são essencialmente trágicos.
Segundo Sevcenko[16]

A literatura fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos. (...) a produção dessa historiografia teria, por consequência, de se vincular aos agrupamentos humanos que ficaram marginais aos sucessos dos fatos. Estranhos aos êxitos, mas nem por isso ausentes, eles formaram o fundo humano de cujo abandono e prostração se alimentou a literatura. Foi sempre clara aos poetas a relação intrínseca existente entre a dor e a arte. Esse é o caminho pelo qual a literatura se presta como um índice admirável, e em certos momentos mesmo privilegiado, para o estudo da história social.

Assim a literatura, como a história é mimética, uma vez que tanto historiador quanto escritor não consegue radiografar o passado, porque desse passado  os vestígios são “relatos testemunhais”[17] ou história das memórias dos outros, portanto desatualizadas, que servem à investigação. Nesse sentido o tempo e o espaço mimético da narrativa literária é o tempo diegético[18] da história.  Observando o ano de lançamento das obras O Tronco (1956), Quinta-feira Sangrenta (1975) e Serra dos Pilões (1995), e o contexto de cada obra, percebe-se que há uma significativa interlocução entre esses autores: Bernardo Élis escreve O Tronco num primeiro plano, a partir de relatos orais, posteriormente de pesquisas históricas, Oswaldo Rodrigues Póvoa, depois de uma intensa pesquisa histórica sobre a colonização do estado de Goiás e dos fatos narrados pelos “mais velhos”, seus ascendentes sobre o evento que culminou na luta entre as forças do governo e os jagunços de Abílio Batata e Roberto Dorado; Moura Lima investiga a história da Vila de Pedro Afonso, transformada em ruína em 1914, pelo bando de Abílio Batata, cinco anos antes da chacina na Vila do Duro, fechando assim, o ciclo narrativo.

[1] In: Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Trad. De Alda Baltar e Maria Auxiadora Kneip. 4ª Ed. , Brasília: Editora Universidade, 1998; 18-19.
[2] Segundo Erich Auerbach: A representação da realidade na literatura ocidental, de 1953, diegesis – conceito de narratologia, estudos literários, dramaturgos ou de cinema que diz respeito à dimensão ficcional de uma narrativa – a diegesis é a realidade própria de uma narrativa – O tempo diegético  e o espaço diegético são assim, o  tempo e o espaço que decorrem ou existem dentro da trama com suas particularidades, limites e coerências determinadas pelo autor.
[3] In: A escrita da história, (1992)
[4] O texto histórico como artefato literário; In: Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a Crítica da Cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.
[5] Sarlo, Beatriz. Tempo Passado – cultura da memória e Guinada subjetiva. - São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.  Nas reconstituições da pós-memória há a dupla utilização do lembrar: lembrar fatos que não foram diretamente experimentados, lembrar o que não se viveu; pós-memória  é ainda  a memória dos filhos sobre a memória dos pais; pag. 90
[6] Francisco Foot Hardman. A Vingança da Hiléia: Euclides da Cunha. A Amazônia e a Literatura Moderna. São Paulo: Editora UNESP, 2009
[7] In Marcio Seligmann Silva. A literatura de testemunho e a tragédia: pensando algumas diferenças. Organizado por Ettore Finazzi- Agró e Roberto Vecchi. São Paulo: Unimarco Editora, 2004.
[8] BAKHTIN, Mikail.  Os estudos  literários hoje In Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
[9] Homo ínfimus: a literatura dos pontos extremos, In:  a vingança da Hiléia, 2009, cap. 19.
[10] In: Estruturalismo e poética, trad. José Paulo Paes e Frederico Costa de Barros. 2ª Ed. São Paulo Cultix,1973, pag 63 
[11]Mikhail Bakhtin.  O Problema do texto In: Estética da criação verbal, 1997, pag. 343
[12]In: Todorov. Op cit. Pag. 44.
[13] Comentário da obra,  “A saga do bandoleiro”,  nota de orelha, 1995.
[14] In Simone Garcia. Canudos: história e Literatura. Curitiba: HD Livros, 2002;  27.
[15] Sarlo; 12.
 [16] SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão.  2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; 31-32.
 [17] Para Sarlo, os relatos testemunhais são discurso, porque têm como condição um narrador implicado nos fatos, que não persegue uma verdade externa no momento em que é enunciado. Pag 49
[18] Para representação da realidade na literatura ocidental: São Paulo, Editora Perspectiva, 1970 - O tempo diegético e o espaço diegético são assim, o tempo e o espaço que decorrem ou existem dentro da trama com suas particularidades, limites e coerências determinadas pelo autor.
 [19] A narrativa de estrutura simples e a narrativa de estrutura complexa. In: Análise Estrutural de Romances Brasileiros. Petrópolis, RJ: Vozes, 1973; pags. 15-53.




terça-feira, 6 de maio de 2014


Apontamentos para iniciar estudos drummondianos.


Faces da poesia de Carlos Drummond de Andrade

A poesia e o romance de 30 tomaram rumos diferentes, embora tenham conservado algumas características em comum. Os poetas de 30, interessados fundamentalmente no sentido da existência humana, no confronto do homem com a realidade, enfim, no “estar-no-mundo”, seguiram caminhos diferentes, que vão da reflexão filosófico-existencialista ao espiritualismo, da preocupação social e política ao regionalismo, da metalinguagem ao sensualismo.

O regionalismo, marca central do romance de 30, só eventualmente se manifesta na poesia, que tende à universalização e, por isso, retrata os conflitos do homem em geral, e não do homem brasileiro ou do homem de uma das regiões do país. 

Em 1930, a primeira geração modernista já saíra vitoriosa na luta travada contra a cultura acadêmica. Muitas de suas propostas, como o verso livre, a afirmação de uma língua brasileira, a priorização da paisagem nacional e a abordagem de temas ligados ao cotidiano, estavam definitivamente consolidados em nossa literatura.

Nas décadas de 1930 e 40, a poesia brasileira vivia um de seus melhores momentos. Livre do compromisso de combater o passado, manteve muitas das conquistas da geração anterior, mas sentia-se inteiramente à vontade para voltar a cultivar certos recursos poéticos que o radicalismo da primeira geração tornara objeto de desprezo, tais como os versos regulares (metrificados), a estrofação criteriosa e as formas fixas, como o soneto, a balada, o rondó, o madrigal, etc.

Não se tratava de uma geração antimodernista no interior do modernismo. Esses poetas levaram adiante o projeto de liberdade de expressão da primeira geração (de 1922), a ponto de até empregar as formas utilizadas pelos clássicos. Tratava-se de um período de maturidade e alargamento das conquistas dos modernistas da primeira geração.

Maturidade porque já não havia necessidade de escandalizar os meios culturais e acadêmicos. Sem radicalismos e excessos, os poetas sentem-se à vontade tanto para escrever versos livres quanto para fazer um soneto sem que isso significasse  voltar ao parnasianismo. E o alargamento da poesia se dá principalmente nos temas.

Carlos Drummond de Andrade é poeta que melhor representa o espírito dessa geração, e sua produção poética encontra-se num dos pontos mais altos da literatura brasileira.

Em 1987, a poesia brasileira perdeu Carlos Drummond de Andrade, a maior expressão da poética viva do século XX. Considerado até então o principal poeta vivo dos países de língua portuguesa, Drummond foi um desses escritores que aparecem de tempos em tempos e consegue apreender e refletir poeticamente as inquietações de uma época, tal qual um Fernando Pessoa ou um Camões.

Poeta e prosador (cronista) admirável, a dimensão e a riqueza da obra de Drummond, de 1930 a 1986, ainda requer investigação mais abrangente. Dada a farta produção poética de Drummond, a organização de suas obras em partes ou em fases permite acompanhar com maior clareza a evolução de seus temas, de sua visão de mundo e de seus traços estilísticos.

Se considerarmos os primeiros 30 anos dos 56 de carreira  poética do autor, pelo menos quatro fases podem ser identificadas: a fase gauche, de 1930 – 1940; a fase social, de 1940 – 1945; a fase do “não” ou das negações, na década de 1960 e a fase de memorias, nas décadas de 1970 e 1980.

A fase gauche também conhecida como a fase de consciência e isolamento é representada pelas obras Alguma poesia, 1930, sua primeira publicação, e Brejo das Almas, 1934. Nelas, ainda podem ser encontrados certos recursos que se associam à primeira geração modernista como o humor, a piada, a síntese, a linguagem coloquial, que pode retratar o cotidiano com poemas longos ou poemas curtos como “Construção”, por exemplo, ou “Cidadezinha qualquer”, em que o poeta assim se expressa:

Um grito pula no ar como foguete
Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos.
O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.

Às vezes, no registro desse cotidiano predomina o humor e a ironia, como em “Cidadezinha qualquer”
Casas entre bananeiras
Mulheres entre laranjeiras
Pomar amor cantar
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.

O espirito de síntese é visível também no poema pílula, que lembra Oswald de Andrade: “Cota zero”
Stop.
A vida parou
Ou foi o automóvel?
O tom de piada e ironia aparece nestes versos de “Politica literária” que dedica a Manuel Bandeira:
O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.

São comuns a essa fase gauche – (palavra de origem francesa, que significa “lado esquerdo”; aplicada ao ser humano significa aquele que se sente às avessas, torto, que não consegue estabelecer uma comunicação com a realidade) -, da poesia drummondiana certos traços como o pessimismo, o individualismo, o isolamento, a reflexão existencial, além de certas atitudes permanentes, que se estenderão por toda a obra, como a ironia e o uso da metalinguagem.

Ao gauche não há saídas: nem o amor, nem a morte, nem mesmo o isolamento. Desesperado, ele busca comunicar-se com o mundo por meio do canto, mesmo que seja um canto torto, gauche:
A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Embora o gauche afirme que “a poesia é incomunicável”, é ela que estabelece a mediação entre o eu e o mundo, e talvez, a saída, a única esperança, para ele, seja cantar o próprio canto ou o silêncio, isto é, cantar o canto que não existe:

Poesia
Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
Inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
Inunda a minha vida inteira.

O “Poema de sete faces”,  poema de abertura de Alguma poesia,  apresenta o tema do gauchismo, além de apresentar uma síntese dos vários aspectos que caracterizam a obra de Drummond no futuro:

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem  na sombra
disse: vai, Carlos! Ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
Que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
Não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
Pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porem meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é serio, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria solução.
Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é o meu coração

eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

 

Tereza Ramos de Carvalho






A literatura informativa  e características estéticas

A história da Literatura brasileira é dividida em grandes períodos que acompanham a evolução política, econômica e social do país. A esses dois períodos podemos chamá-los de Era Colonial e Era Nacional. A Era Colonial corresponde ao período de ocupação e exploração da terra. Essas Eras por sua vez, são subdivididas em períodos, didaticamente demarcados, denominados estéticas ou estilos literários.

Assim temos, na Era  Colonial o Quinhentismo no século XVI; o Seiscentismo ou  Barroco no século XVII, o Setecentismo ou Arcadismo no século XVIII; o período de transição mediado pelo pré-romantismo identificado entre 1808 e 1836. A Era Nacional compreende o Romantismo – século XIX às tendências contemporâneas.
 
A Era colonial corresponde ao período de formação da literatura brasileira, a começar pelo Quinhentismo, que pela natureza dos textos produzidos não é considerado estética literária. São textos de natureza informativa e apresentam a visão do colonizador europeu, portanto, são textos históricos que alem de serem escritos pelos cronistas europeus eram destinados a eles. Esteticamente apresentam o assombro do colonizador diante da “nova terra”, sua impressão sobre a natureza, a aculturação do português, do negro e com o aborígine. Mais tarde, (durante o Romantismo e o Modernismo) esses textos são revisitados e interpretados por autores românticos e modernistas. É o caso do romantismo de Alencar ao eleger o índio como herói medieval, em Iracema, O Guarani e Ubirajara; de Gonçalves Dias com seus poemas indigenistas, que representam a extinção tribal e, mais tarde , Mario de Andrade elege macunaíma “herói sem nenhum caráter” co o herói da nossa gente; Oswald de Andrade propõe uma revisão critica  desses textos informativos quando afirma em seu manifesto antropófago: “ nunca fomos catequizados. Fizemos foi caranaval”; além de outros textos como “Erro de português” , e Zé Brasil, com b minúsculo.


As manifestações literárias do Quinhentismo estão divididas entre a Carta de Caminha, dirigida a El-Rei Dom Manuel, informando o “achado” e apresenta seu espanto e sua visão superficial da natureza, do selvagem e prenuncia as possibilidades de exploração econômica da terra. O “tratado descrititvo da terra e do Brasil, de Pero de Magalhães Gândavo, que pode ser considerado um documento geo-histórico do pis no que se refere à geografia e a cultura local; há ainda a literatura epistolar e a literatura dos jesuítas. Esta, de caráter religioso e cataquético, apresenta uma visão dualista entre o cristianismo e o paganismo. Textos escritos em português ou em tupi e tinham como objetivo primeiro incutir no nativo, o medo, apresentando-lhe um Deus cristão, assim como a diferença entre o bem e o mal – representados por Deus e o Diabo, contrapondo-se porém, aos deuses da natureza, aos seus deuses ou tótens, uma situação antagônica.

O século XVII apresenta uma nova visão  com reflexos da Reforma e da Contra-Reforma da Igreja Católica, é a estética dos contrastes. O Barroco brasileiro pode ser considerado o início da produção literária  brasileira por apresentar textos escritos sobre o Brasil, por escritores brasileiros e destinados ao brasileiro, a exemplo temos o poeta baiano Gregório de Matos, com sua poesia satírica que criticava tanto a exploração portuguesa quanto a condição do colonizado. Coube a Bento Teixeira  o papel de iniciador dessa estética com a publicação de Prosopopeia , que à maneira de Camões, descreve os feitos de Jorge de Albuquerque. Na verdade, é uma obra encomiástica. Gregório da Matos com sua sátira política, desperta o sentimento nativista que vai acentuar-se no século XVIII, durante o Arcadismo, quando da Inconfidência Mineira alguns  patriotas, entre eles Tomás Antonio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, Basílio da Gama e Santa Rita Durão se manifestam a favor da valorização da Pátria e da cultura nacional. É o caso das Cartas Chilenas que denunciam os desmandos do governador de Minas; Uraguai, de Basílio da Gama, obra que apresenta uma visão “determinista” do processo de aculturação; e Caramuru, uma sátira à colonização – obras essas que despertam ainda mais o sentimento nativista que será desenvolvido com mais entusiasmo durante o Romantismo brasileiro, na Era Nacional.       

Tereza Ramos de Carvalho
 Maio de 2014