Apontamentos para iniciar estudos drummondianos.
Faces da poesia de Carlos Drummond de Andrade
A poesia e o romance de 30
tomaram rumos diferentes, embora tenham conservado algumas características em
comum. Os poetas de 30, interessados fundamentalmente no sentido da existência
humana, no confronto do homem com a realidade, enfim, no “estar-no-mundo”,
seguiram caminhos diferentes, que vão da reflexão filosófico-existencialista ao
espiritualismo, da preocupação social e política ao regionalismo, da
metalinguagem ao sensualismo.
O regionalismo, marca central
do romance de 30, só eventualmente se manifesta na poesia, que tende à
universalização e, por isso, retrata os conflitos do homem em geral, e não do
homem brasileiro ou do homem de uma das regiões do país.
Em 1930, a primeira geração
modernista já saíra vitoriosa na luta travada contra a cultura acadêmica.
Muitas de suas propostas, como o verso livre, a afirmação de uma língua
brasileira, a priorização da paisagem nacional e a abordagem de temas ligados
ao cotidiano, estavam definitivamente consolidados em nossa literatura.
Nas décadas de 1930 e 40, a
poesia brasileira vivia um de seus melhores momentos. Livre do compromisso de
combater o passado, manteve muitas das conquistas da geração anterior, mas
sentia-se inteiramente à vontade para voltar a cultivar certos recursos
poéticos que o radicalismo da primeira geração tornara objeto de desprezo, tais
como os versos regulares (metrificados), a estrofação criteriosa e as formas
fixas, como o soneto, a balada, o rondó, o madrigal, etc.
Não se tratava de uma
geração antimodernista no interior do modernismo. Esses poetas levaram adiante
o projeto de liberdade de expressão da primeira geração (de 1922), a ponto de
até empregar as formas utilizadas pelos clássicos. Tratava-se de um período de
maturidade e alargamento das conquistas dos modernistas da primeira geração.
Maturidade porque já não
havia necessidade de escandalizar os meios culturais e acadêmicos. Sem
radicalismos e excessos, os poetas sentem-se à vontade tanto para escrever
versos livres quanto para fazer um soneto sem que isso significasse voltar ao parnasianismo. E o alargamento da
poesia se dá principalmente nos temas.
Carlos Drummond de Andrade é
poeta que melhor representa o espírito dessa geração, e sua produção poética
encontra-se num dos pontos mais altos da literatura brasileira.
Em 1987, a poesia brasileira
perdeu Carlos Drummond de Andrade, a maior expressão da poética viva do século
XX. Considerado até então o principal poeta vivo dos países de língua
portuguesa, Drummond foi um desses escritores que aparecem de tempos em tempos
e consegue apreender e refletir poeticamente as inquietações de uma época, tal
qual um Fernando Pessoa ou um Camões.
Poeta e prosador (cronista)
admirável, a dimensão e a riqueza da obra de Drummond, de 1930 a 1986, ainda
requer investigação mais abrangente. Dada a farta produção
poética de Drummond, a organização de suas obras em partes ou em fases permite
acompanhar com maior clareza a evolução de seus temas, de sua visão de mundo e
de seus traços estilísticos.
Se considerarmos os
primeiros 30 anos dos 56 de carreira
poética do autor, pelo menos quatro fases podem ser identificadas: a
fase gauche, de 1930 – 1940; a fase social, de 1940 – 1945; a fase do “não” ou
das negações, na década de 1960 e a fase de memorias, nas décadas de 1970 e
1980.
A fase gauche também
conhecida como a fase de consciência e isolamento é representada pelas obras Alguma poesia, 1930, sua primeira
publicação, e Brejo das Almas, 1934.
Nelas, ainda podem ser encontrados certos recursos que se associam à primeira
geração modernista como o humor, a piada, a síntese, a linguagem coloquial, que
pode retratar o cotidiano com poemas longos ou poemas curtos como “Construção”,
por exemplo, ou “Cidadezinha qualquer”, em que o poeta assim se expressa:
Um
grito pula no ar como foguete
Vem
da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos.
O
sol cai sobre as coisas em placa fervendo.
Às
vezes, no registro desse cotidiano predomina o humor e a ironia, como em
“Cidadezinha qualquer”
Casas
entre bananeiras
Mulheres
entre laranjeiras
Pomar
amor cantar
Um
homem vai devagar.
Um
cachorro vai devagar.
Um
burro vai devagar.
Devagar
as janelas olham.
Eta
vida besta, meu Deus.
O
espirito de síntese é visível também no poema pílula, que lembra Oswald de Andrade:
“Cota zero”
Stop.
A
vida parou
Ou
foi o automóvel?
O
tom de piada e ironia aparece nestes versos de “Politica literária” que dedica
a Manuel Bandeira:
O
poeta municipal
discute
com o poeta estadual
qual
deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto
isso o poeta federal
tira
ouro do nariz.
São
comuns a essa fase gauche – (palavra
de origem francesa, que significa “lado esquerdo”; aplicada ao ser humano
significa aquele que se sente às avessas, torto, que não consegue estabelecer
uma comunicação com a realidade) -, da poesia drummondiana certos traços como o
pessimismo, o individualismo, o isolamento, a reflexão existencial, além de
certas atitudes permanentes, que se estenderão por toda a obra, como a ironia e
o uso da metalinguagem.
Ao
gauche não há saídas: nem o amor, nem a morte, nem mesmo o isolamento.
Desesperado, ele busca comunicar-se com o mundo por meio do canto, mesmo que
seja um canto torto, gauche:
A
poesia é incomunicável.
Fique
torto no seu canto.
Não
ame.
Embora
o gauche afirme que “a poesia é
incomunicável”, é ela que estabelece a mediação entre o eu e o mundo, e
talvez, a saída, a única esperança, para ele, seja cantar o próprio canto ou o
silêncio, isto é, cantar o canto que não existe:
Poesia
Gastei
uma hora pensando um verso
que
a pena não quer escrever.
No
entanto ele está cá dentro
Inquieto,
vivo.
Ele
está cá dentro
e
não quer sair.
Mas
a poesia deste momento
Inunda
a minha vida inteira.
O
“Poema de sete faces”, poema de abertura
de Alguma poesia, apresenta o tema do gauchismo, além de
apresentar uma síntese dos vários aspectos que caracterizam a obra de Drummond
no futuro:
Quando
nasci, um anjo torto
desses
que vivem na sombra
disse:
vai, Carlos! Ser gauche na vida.
As
casas espiam os homens
Que
correm atrás de mulheres.
A
tarde talvez fosse azul,
Não
houvesse tantos desejos.
O
bonde passa cheio de pernas:
Pernas
brancas pretas amarelas.
Para
que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porem
meus olhos
não
perguntam nada.
O
homem atrás do bigode
é
serio, simples e forte.
Quase
não conversa.
Tem
poucos, raros amigos
o
homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu
Deus, por que me abandonaste
se
sabias que eu não era Deus
se
sabias que eu era fraco.
Mundo
mundo vasto mundo,
se
eu me chamasse Raimundo
seria
uma rima, não seria solução.
Mundo
mundo vasto mundo
mais
vasto é o meu coração
eu
não devia te dizer
mas
essa lua
mas
esse conhaque
botam
a gente comovido como o diabo.
Tereza
Ramos de Carvalho
Nenhum comentário:
Postar um comentário