terça-feira, 6 de maio de 2014


Apontamentos para iniciar estudos drummondianos.


Faces da poesia de Carlos Drummond de Andrade

A poesia e o romance de 30 tomaram rumos diferentes, embora tenham conservado algumas características em comum. Os poetas de 30, interessados fundamentalmente no sentido da existência humana, no confronto do homem com a realidade, enfim, no “estar-no-mundo”, seguiram caminhos diferentes, que vão da reflexão filosófico-existencialista ao espiritualismo, da preocupação social e política ao regionalismo, da metalinguagem ao sensualismo.

O regionalismo, marca central do romance de 30, só eventualmente se manifesta na poesia, que tende à universalização e, por isso, retrata os conflitos do homem em geral, e não do homem brasileiro ou do homem de uma das regiões do país. 

Em 1930, a primeira geração modernista já saíra vitoriosa na luta travada contra a cultura acadêmica. Muitas de suas propostas, como o verso livre, a afirmação de uma língua brasileira, a priorização da paisagem nacional e a abordagem de temas ligados ao cotidiano, estavam definitivamente consolidados em nossa literatura.

Nas décadas de 1930 e 40, a poesia brasileira vivia um de seus melhores momentos. Livre do compromisso de combater o passado, manteve muitas das conquistas da geração anterior, mas sentia-se inteiramente à vontade para voltar a cultivar certos recursos poéticos que o radicalismo da primeira geração tornara objeto de desprezo, tais como os versos regulares (metrificados), a estrofação criteriosa e as formas fixas, como o soneto, a balada, o rondó, o madrigal, etc.

Não se tratava de uma geração antimodernista no interior do modernismo. Esses poetas levaram adiante o projeto de liberdade de expressão da primeira geração (de 1922), a ponto de até empregar as formas utilizadas pelos clássicos. Tratava-se de um período de maturidade e alargamento das conquistas dos modernistas da primeira geração.

Maturidade porque já não havia necessidade de escandalizar os meios culturais e acadêmicos. Sem radicalismos e excessos, os poetas sentem-se à vontade tanto para escrever versos livres quanto para fazer um soneto sem que isso significasse  voltar ao parnasianismo. E o alargamento da poesia se dá principalmente nos temas.

Carlos Drummond de Andrade é poeta que melhor representa o espírito dessa geração, e sua produção poética encontra-se num dos pontos mais altos da literatura brasileira.

Em 1987, a poesia brasileira perdeu Carlos Drummond de Andrade, a maior expressão da poética viva do século XX. Considerado até então o principal poeta vivo dos países de língua portuguesa, Drummond foi um desses escritores que aparecem de tempos em tempos e consegue apreender e refletir poeticamente as inquietações de uma época, tal qual um Fernando Pessoa ou um Camões.

Poeta e prosador (cronista) admirável, a dimensão e a riqueza da obra de Drummond, de 1930 a 1986, ainda requer investigação mais abrangente. Dada a farta produção poética de Drummond, a organização de suas obras em partes ou em fases permite acompanhar com maior clareza a evolução de seus temas, de sua visão de mundo e de seus traços estilísticos.

Se considerarmos os primeiros 30 anos dos 56 de carreira  poética do autor, pelo menos quatro fases podem ser identificadas: a fase gauche, de 1930 – 1940; a fase social, de 1940 – 1945; a fase do “não” ou das negações, na década de 1960 e a fase de memorias, nas décadas de 1970 e 1980.

A fase gauche também conhecida como a fase de consciência e isolamento é representada pelas obras Alguma poesia, 1930, sua primeira publicação, e Brejo das Almas, 1934. Nelas, ainda podem ser encontrados certos recursos que se associam à primeira geração modernista como o humor, a piada, a síntese, a linguagem coloquial, que pode retratar o cotidiano com poemas longos ou poemas curtos como “Construção”, por exemplo, ou “Cidadezinha qualquer”, em que o poeta assim se expressa:

Um grito pula no ar como foguete
Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos.
O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.

Às vezes, no registro desse cotidiano predomina o humor e a ironia, como em “Cidadezinha qualquer”
Casas entre bananeiras
Mulheres entre laranjeiras
Pomar amor cantar
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.

O espirito de síntese é visível também no poema pílula, que lembra Oswald de Andrade: “Cota zero”
Stop.
A vida parou
Ou foi o automóvel?
O tom de piada e ironia aparece nestes versos de “Politica literária” que dedica a Manuel Bandeira:
O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.

São comuns a essa fase gauche – (palavra de origem francesa, que significa “lado esquerdo”; aplicada ao ser humano significa aquele que se sente às avessas, torto, que não consegue estabelecer uma comunicação com a realidade) -, da poesia drummondiana certos traços como o pessimismo, o individualismo, o isolamento, a reflexão existencial, além de certas atitudes permanentes, que se estenderão por toda a obra, como a ironia e o uso da metalinguagem.

Ao gauche não há saídas: nem o amor, nem a morte, nem mesmo o isolamento. Desesperado, ele busca comunicar-se com o mundo por meio do canto, mesmo que seja um canto torto, gauche:
A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Embora o gauche afirme que “a poesia é incomunicável”, é ela que estabelece a mediação entre o eu e o mundo, e talvez, a saída, a única esperança, para ele, seja cantar o próprio canto ou o silêncio, isto é, cantar o canto que não existe:

Poesia
Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
Inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
Inunda a minha vida inteira.

O “Poema de sete faces”,  poema de abertura de Alguma poesia,  apresenta o tema do gauchismo, além de apresentar uma síntese dos vários aspectos que caracterizam a obra de Drummond no futuro:

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem  na sombra
disse: vai, Carlos! Ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
Que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
Não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
Pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porem meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é serio, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria solução.
Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é o meu coração

eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

 

Tereza Ramos de Carvalho






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