Ensaio
Introspecção confessional – enfrentamentos do narrador-personagem de Angústia, de Graciliano Ramos.
Tereza Ramos de Carvalho[1]
Já o
desenvolvimento das características do herói depende das reações
emotivo-volitivas do autor, que penetra no caos dos personagens para apresentar sua autêntica
postura de valores e para estabilizar os rostos das personagens.[3]
Neste ensaio
discuto a relação que se pode estabelecer entre autor e personagem de uma obra
a partir da introspecção do personagem central de Angústia, Luis da Silva, que no seu bojo é uma obra confessional e,
portanto, introspectiva. Para tanto busquei a teoria bakhtiniana e a obra de
Antonio Candido, Ficção e confissão
que discute os enfrentamentos do autor Graciliano Ramos, através dos
personagens de suas obras, principalmente em Infância (1945), Angústia (1936), Caetés (1928) e Memórias do Cárcere
(1953).
Angústia é um livro forte, e com uma
narrativa psicológica densa, no entender de Sergius Gonzaga "um dos
romances mais amargos da literatura brasileira”. A obra inicia com o despertar
de um estágio profundo de letargia que domina o personagem Luís da Silva após
cometer um crime, e termina nessa mesma atmosfera. O que completa um percurso
cíclico, acentuado numa realidade que, apesar de apresentar um dinamismo vital,
parece imóvel, se observarmos a velocidade com que tudo parece se totalizar:
O sino da Igrejinha bate a primeira pancada das
ave-marias. Não, não é o sino da igreja, é o relógio da sala de jantar. Oito e
meia. Preciso vestir-me depressa, chegar à repartição às nove horas.
Apronto-me, calço as meias pelo avesso e saio correndo. Paro sobressaltado,
tenho a impressão de que me faltam peças do vestuário. Assaltam-me dúvidas
idiotas. Estarei à porta de casa ou já terei chegado à repartição? Em que ponto
do trajeto me acho? Não tenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro
quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo, mas um segundo que parece
uma eternidade. Está claro que todo o
desarranjo é interior. (Angústia pag.
22).
É como se o
narrador observasse sua vida através de uma fotografia, ou de uma sequência de
fotografias sobre angústia, tema central de sua narrativa. A figura de Luís da
Silva por ser fragmentada assim como a narrativa de sua vida, vai se compondo à
medida que sua subjetividade o delineia e mostra a relação que ele tem com
mundo.
Ao
personagem-narrador, Luis da Silva, o autor de sua história, Graciliano,
demiurgo, concede livre arbítrio para que ele possa transitar e conviver no seu
próprio caos. Luís da Silva, ao
contrário dos personagens de Dostoievski, por exemplo, apresenta uma gênese,
uma causa, explicações do passado e das influências do meio. Cada atitude do
personagem parece estar amarrada, presa a um trauma vivido no passado.
O
poço da pedra era uma piscina enorme. (...) Quando eu ainda não sabia nadar,
meu pai me levava para ali, segurava-me um braço e atirava-me num lugar fundo.
Puxava-me para cima e deixava-me respirar um instante. Em seguida repetia a
tortura. Com o correr do tempo aprendi natação com os bichos e
livrei-me disso. Mais tarde, na escola de mestre Antonio Justino, li a história
de um pintor e um cachorro que morria afogado. Pois para mim era no poço da
pedra que se dava o desastre. Sempre imaginei o pintor com cara de Camilo
Pereira da Silva, e o cachorro parecia-se comigo. (Angústia. pag. 5).
Os espaços de Luís da Silva são demarcados por
situações psicológicas complexas e por sua desagregação mental. Essas
perturbações progressivas do herói, na medida em que avançam, deformam tanto o
espaço do presente quanto do passado. Os motivos espaço-temporais plasmam as
inquietações do ser fragmentado: o quintal da casa, a visão que ele tem da rua,
do bar, da casa, da repartição... e o passado que é referido sempre através de
lembranças da morte e da destruição: o enterro do pai, os afogamentos no poço
da pedra, a morte de seu Evaristo enforcado em seu casebre, a cobra enrolada no
pescoço de seu avô Trajano, a morte de Germana.
Talvez por isso
tenha sempre justificativas para suas atitudes. Luís da Silva é um personagem
que vive em constante tensão psicológica e, em função de sua timidez e solidão,
de sua capacidade mórbida de autoanálise, passa a viver entre as fronteiras de
seus próprios abismos existenciais, a tal ponto que chega a sentir nojo de si
mesmo.
_ Peste! Andei rolando no chão como um porco. (...)
Senti a necessidade de lavar as mãos. Estava imundo e receava contaminar os
objetos. (...) Fui ao banheiro, meti as mãos no balde de água e lavei-as, muito
lentamente porque as feridas começavam a doer em demasia. Deitei fora a água,
mergulhei o balde no tanque e recomecei a lavagem. (Angústia pag. 204).
Esse aspecto
introspectivo do personagem é constante em todo o desenrolar do romance que é
marcado por temporalidade tríplice: o presente
que é fruto de acontecimentos distantes do passado
- principalmente os da infância - que, segundo o herói, são completados por sua
imaginação, aguçam seus desejos.
Ponho-me a vagabundear em pensamento pela vila
distante, entro na igreja, escuto os sermões e os desaforos que padre Inácio
pregava aos matutos: “arreda, povo, raça de cachorro com porco” (...), ouço as
cantilenas dos sapos. Vejo a figura sinistra de seu Evaristo enforcado.
Lembro–me de um fato, de outro fato anterior ou posterior ao primeiro, mas os
dois vêm juntos. (...) Tudo empastado, confuso. (...) saíram do entorpecimento
recordações que a imaginação completou. (...) Lá estão novamente gritando os meus desejos. Calam-se acovardados,
tornam-se inofensivos.[4] (...) Um
arrepio atravessa-me a espinha, inteiriça-me os dedos sobre o papel. (...). De
repente surgiam vozes estranhas, ..., vozes que iam crescendo, monótonas e
causavam medo. Um alarido, um queixume, clamor enorme, sempre no mesmo
tom. As ruas enchiam-se, a saleta
enchia-se, e eu tinha a impressão de que o brado lastimoso saía das paredes.
(...) a verdade é que muitas vezes
perguntei a mim mesmo se realmente ouvia aquele barulho grande, diferente dos
outros barulhos. Perguntei naquele tempo, ou perguntei depois? Não sei. Tenho
me esforçado para tornar-me criança. E em conseqüência misturo coisas atuais a
coisas antigas. (Angústia. pags. 16 e
17).
Para Bakhtin (1997), o herói de uma obra, além de depender das emoções
emotivo-volitivas do autor, é também parte, fragmento dele[5]. Nesse
caso o herói pode ser considerado autobiográfico. Luís da Silva, na medida em
que se propõe a narrar suas lembranças, principalmente as da infância e os
fatos do passado recente, estabelece uma aproximação com o narrador de Infância, obra publicada nove anos após
a publicação de Angústia. A impressão
do leitor atento é de que o autor está presente no produto criado por ele. Assim, pode-se afirmar que há uma
contraditória coincidência entre o autor e o herói, pois por ser o autor uma
parte integrante do todo artístico como tal, não poderia coincidir com o herói,
que é também parte integrante do autor. Bakhtin (1997), afirma que o autor se
situa muito próximo de seu herói, ‘parecem ser intercambiáveis nos lugares que
ocupam respectivamente, e é por esta razão que é possível essa coincidência
entre autor-escritor e personagem-autor.[6] O autor
é o depositário da tensão exercida pela unidade de um todo acabado, o todo do
herói e o todo da obra. E a consciência
do autor engloba e acaba a consciência do herói e do seu mundo, pois o autor vê
e sabe mais do que o herói. E o discurso do herói está impregnado do discurso
do autor-criador sobre o herói[7].
Podemos citar
em Angústia vários exemplos desse
intercâmbio herói x autor: se considerarmos a tonalidade ficcional de Infância na infância de Graciliano, as
inquietações do herói podem ser consideradas uma refração ao herói de Angústia.
Seus traços característicos, os episódios de sua vida, seus atos e pensamentos,
sentimentos em relação aos outros e o seu juízo de valor a todos esses
sentimentos.
Antonio Candido
em Ficção e Confissão apresenta alguns elementos que confirmam as discussões de
Bakhtin, e o elemento que parece ser a característica que mais aproxima o
personagem Luís da Silva de seu autor-criador é que Graciliano dá-lhe “algo
muito seu: a vocação literária”, apesar de apresentar uma “irritação permanente
contra tudo o que escreveu”.[8] Segundo
Candido, Luis da Silva é personagem criado com premissas autobiográficas; e
Angústia, autobiografia potencial.
Quanto à atitude literária, Luís da Silva também apresenta esse
potencial crítico à sua escritura; que pode ser comparado à postura de
Graciliano:
Habituei-me
a escrever, como já disse. Nunca estudei, sou um ignorante, e julgo que os meus
escritos não prestam. Mas adquiri cedo o veio de ler romances e posso, com
facilidade, arranjar um artigo, talvez um conto. Compus, no tempo da métrica e
da rima, um livro de versos. Eram duzentos sonetos aproximadamente. Não me foi
possível publicá-los, e com a idade compreendi que não valiam nada. (Angústia. pag. 45).
Outra atitude
do autor Graciliano que o aproxima de seu herói Luis da Silva é sua “aversão,
que vai da mal refreada birra ao ódio puro e simples pelos ricos, importantes,
doutos, fariseus, homens dos vários graus de compromisso com a ordem
estabelecida.” Uma espécie de projeção da sua náusea ante os livros de leitura
do solene Barão de Macaúbas, de Infância.[9] E essa
aversão é nutrida por Luis da Silva:
Dinheiro
e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e outras
destruições, as duas colunas mal impressas, caixilho, dr. Gouveia, Moisés,
homem da luz, negociantes, políticos, diretor e secretário, tudo se move na
minha cabeça como um monte de vermes, em cima de uma coisa amarela, gorda e
mole que é, reparando-se bem, a cara balofa de Julião Tavares aumentada.
(Angústia. p. 9).
A partir dessas
considerações podemos pensar nos enfrentamentos das contradições do autor
através de sua trajetória literária em Angústia:
O herói Luís da Silva é um
personagem angustiado com marcas profundas daqueles que despertaram para a
realidade, por terem sidos obrigados a isso, e perceberam, nesse despertar, a
deformação dos valores do homem. Ao nomeá-lo como autor-narrador ou pseudoautor
para seu texto, Graciliano retoma sua preocupação com o fazer literário, com o
texto enquanto produção. A solidão do indivíduo e a dificuldade de um encontro
satisfatório com outro ser humano deságuam na opção de escrever para sobreviver
psicológica e materialmente. Vítima da opressão e, consciente disso, vende sua
escritura, que assume os valores e os contornos do opressor. Sua liberdade
criadora acha-se comprometida com artigos elogiosos, em jornais, a políticos e
comerciantes sem escrúpulo. (“se me tivesse encomendado e pago um artigo de
elogio...”). Luis da Silva vê-se como um objeto intelectual do mundo ao qual
pertence.
Os sentimentos
contraditórios de Luís da Silva – intelectual - são animados por uma antinomia:
o privilégio e a miséria. Apesar do conhecimento intelectual e de sua
consciência moral, ele não assumiu nenhuma posição político-social, fez
concessões de tudo, e o que lhe restou foi a consciência angustiada de
sentir-se alienado e vendido. Suas lembranças da infância e da adolescência ampliam-se
para uma extensão vital e percorrem o texto a tal ponto sob formas obsedantes
que levam o herói a destruir-se gradativamente.
Outro
enfrentamento vivido pelo narrador é sua luta constante em busca do
conhecimento de sua natureza contraditória. Tem uma visão pessimista do mundo
que constrói o sistema de valores e, assim como Graciliano, generaliza o drama
individual, levando-o ao âmbito das relações sociais, aniquiladora das
possibilidades do homem. Esse enfrentamento, reflexo das relações familiares
repressivas e violentas, leva Luís da Silva a submeter suas relações
posteriores com o outro a processos de fuga na qual o confronto com a realidade
é motivo para humilhação, tanto que seu “mundo desaba sempre que a realidade
lhe entra pelos olhos”.
Outro
enfrentamento do autor diz respeito ao contexto em que está inserido o Nordeste
agrário e as relações problemáticas entre senhor e escravos. A decadência dos
engenhos, o complexo econômico agora unido às situações sociológicas implícitas
que sintetiza ficcionalmente a desagregação social e a degradação do indivíduo
desce ao patamar da zoomorfização. A ponto de Graciliano construir um universo
zoológico inferiorizante que pode ser comparado à diminuição da humanidade:
rato, sururu, ratuínos, coruja, cobra vão ganhando espaço nesse universo no
qual a luta pela sobrevivência substitui valores humanos.
Graciliano
ainda traz para o espaço urbano um personagem em trânsito do meio rural, assim
atinge, depois de São Bernardo e, posteriormente em Vidas Secas , os problemas
do Nordeste. Nesse contexto apresenta Luís da Silva, um indivíduo dominado por
obsessões infantis, social e afetivamente oprimido, num ambiente em que a
predominância do dinheiro – ou da falta dele – mantém o herói numa tensão
continuada, acentuando ainda mais suas antinomias: um ser intelectualmente
privilegiado que lança-se num caminho errado e vislumbra a solução na morte de
Julião Tavares e na destruição de todas as qualidades desagradáveis que o
intimidavam. A morte de Julião pode representar a morte dos valores burgueses
que, segundo Candido é “surdamente desejada” nas obras de Graciliano Ramos.
Retomando à
proposta inicial deste ensaio que é discutir a relação que se pode estabelecer
entre autor e personagem de uma obra a partir da introspecção do personagem
central de Angústia, pode-se afirmar
que as inquietações do personagem-narrador confundem-se, ou apresentam
características comuns às do narrador de Infância. Nas palavras de Candido, “parece que Angústia
contém muito de Graciliano Ramos, tanto no plano consciente (pormenores
biográficos), quanto no inconsciente (tendências profundas, frustrações)
representando a sua projeção pessoal até a mais completa no plano da arte.” Não
se pode confundir Graciliano Ramos com Luís da Silva, mas Luís pode representar
o resultado do que foi reprimido em Graciliano.[10] Nesse sentido podemos dizer que o herói
de Angústia, Luis da Silva,
subjetivo, nasce a partir das evoluções emotivo-volitivas do autor e se
concretiza a partir da materialidade objetiva do texto.
Referências
BAKHTIN, Mikhail.
“O autor e o Herói” In A estética da
Criação Verbal. Tradução a partir do Francês - Maria Ermantina G. G.
Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
CANDIDO, Antonio.
Ficção e Confissão – Ensaios sobre
Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34.
RAMOS,
Graciliano. Angústia: posfácio de
Otto Maria Carpeaux, ilustrações de Marcelo Grasmam. 48ª Ed. Rio, São Paulo,
1998, 240 pag.
RAMOS, Graciliano
- Fortuna Críticas; coletânea
organizada por Sônia Brayner. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 315
pag.
[1]
Professora Mestre e Doutora em Literatura pela Universidade de Brasília - UnB.
[2]
BAKHTIN, Mikhail. “O autor e o Herói” In A
estética da Criação Verbal. Tradução a partir do Francês - Maria Ermantina
G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
[3]
Ibidem
[4]
Grifo nosso.
[5]
Idem. p.
28
[6]
Idem. p 166.
[7]
Idem. p. 32
[8]
CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão – Ensaios sobre Graciliano Ramos. São
Paulo: Editora 34. p. 42
[9]
CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão – Ensaios sobre Graciliano Ramos. São
Paulo: Editora 34.- p. 43
[10]
CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão.
Pág. 44.

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