Leitura
semiótica do poema Rural “Lavra Dor”, de Mário Chamie
Tereza Ramos de Carvalho[1]
Introdução
Escrito
em 1962, o poema rural “Lavra Dor” ilustra a chamada Poesia Práxis que, de
início foi uma ruptura polêmica e agressiva com o grupo concretista. Este
surgimento, em 1956, com a Revista Noigandres - o primeiro movimento a
refletir, em forma e conteúdo, as
mudanças que a industrialização acelerada vinha causando, sobretudo na vida
urbana. Seus criadores, poetas paulistas Décio Pignatári e os irmãos Haroldo e
Augusto de Campos, queriam produzir uma poesia à altura da sociedade moderna,
na qual os signos da técnica fossem valorizados de modo crítico. Para eles a
comunicação não se faz no nível do tema, mas na própria estrutura
verbi-voco-visual (semântico, sonoro e visual). Dessa forma a poesia concreta
transforma-se em objeto, que não representa sentimentos ou emoções, mas torna
presente a realidade em si do poema.
A
poesia Práxis rompeu com o grupo concretista, por volta de 1961, e teve como
seu principal representante o poeta
Mário Chamie, que junto ao veterano Cassiano Ricardo pesquisou uma “nova
estrutura” para o poema. Em 1962, Chamie publica o livro “Lavra Lavra”, que representou
a grande abertura para a poesia práxis. Esta em vez de considerar a
“palavra-coisa”, considera a “palavra-energia”, isto é, aquela que gera outras
palavras no contexto do poema. Para os adeptos da Práxis, o poema não é mais um
objeto concreto, fechado, mas uma matéria transformável; as palavras são
organismos vivos. A práxis representa a retomada da importância do conteúdo.
Poema Rural “Lavra Dor”, de Mário
Chamie
I
Lavra: Onde tendes pá, o pé e o pó
Sermão da cria: tal terreiro.
Dor: onde tenho o pó, o pé e a pá.
Quinhão da via: tal meu meio
De plantar sem água e sombra.
Lavra: Onde está o pó tendes cãibra;
Agacho dói ao rés e relva.
Dor:
onde jaz o pó, tenho a planta
Do pé e milho junto à graça
Do ar de maio, um ar de cheiro.
Lavra: A planta, e o pé, e o pó, e a terra;
O mapa vosso; várzea e erva.
II
Dor:
onde o ganho alastra eu perco.
Perde o mapa como a cor, fina réstea
De amanho em nós, nossa rédea
De luz lastro em casa, o raso
Nosso e a fome clara e verga
O corpo onde o ganho alastra.
Lavra: a planta e o mapa, pó e safra
Dor:
onde a morte perde, em ganho.
Ganha a casa amor, o pouco
De amanho em nós, já redobra
De paz aura em casa, o raso
Nosso e a fome cava cede
Ao corpo, onde a morte perde.
Lavra: mapa vosso, várzea e erva,
Domingo e sol um vôo narra.
III
Dor:
Onde é a mó, mais moeda má,
ardendo, ardente ira, nós
o veio, nosso sangue, vaza.
Lavra: mapa vosso, várzea e safra.
Dor:
onde é o pó, cultivo raia
pó de arroz outona. Acelera
o sol não o vôo mas a raiva
nossa, lenta mó que esmaga
a lavra a dor, a mão e o calo.
E orando, aramos, sem sombra
se arados somos
no valo.
II. Do título
Em “Lavra Dor” o poeta transforma o nome simples, lavrador, numa palavra
composta, ou seja, o poeta utiliza-se de um arranjo semântico para fazer uma
releitura da palavra. Processo de transmutação analógica.
Morfologicamente,
lavrador tem apenas um radical lavra, dor
é um morfema derivacional. Metamorfoseando-a temos três palavras que
ganham existência própria, cada uma com uma carga semântica independente mas que interrelacionam-se como
cúmplices: lavrador, deverbal de
lavrar, do latim laborare que
significa aquele que trabalha na lavoura; lavra,
trabalho
do lavrador e a dor que é
uma sensação desagradável, variável em extensão e localização, como resultado
do esforço na lavra. Analogia semântico-morfológica.
III. Da construção do poema
Mário
Chamie define alguns procedimentos da poesia práxis:
·
Todo problema tem suas palavras;
·
Cada palavra tem seu centro de energia e
seu vocabulário;
·
Todo vocabulário de uma palavra tem suas
relações em níveis sintático, semântico e pragmático;
·
A linguagem produz a informação;
·
A informação é estética e semântica,
mais estética e menos semântica, segundo maior ou menor eficiência do trabalho de co-autoria do leitor.
No
poema em estudo, “Lavra Dor”, o poeta vincula a palavra e o contexto
extralingüístico partindo de área externa, procurando, através de elementos
sensíveis, todos os significados e contradições possíveis, que lhe conferem
realidade e existência.
O
autor registra alternadamente a ação “lavra’ e o efeito “dor”, dando-nos uma
informação mais semântica do que estética pela forte carga significativa
apresentada em seu conteúdo.
Na
“lavra”, o discurso gira em torno de palavras-chaves, verdadeiros “organismos
vivos” com relações em níveis semântico, sintático e, essencialmente pragmático
numa espécie de diálogo travado com a “dor”. (observar os tempos verbais).
Lavra:
onde tendes pá, o pé e o pó
Sermão
da cria: tal terreiro.
Lavra: onde está o pó
tendes cãibra;
Agacho dói ao rés e relva
Lavra:
a planta e o mapa, pó e safra.
Lavra:
mapa vosso, várzea e erva
Domingo
e sol um vôo narra.
Lavra:
mapa vosso, várzea e safra.
Nas
palavras “pá”, “pé”, “pó”, o autor utiliza a aliteração como recurso
estilístico que (intencionalmente ou não) legitima os elementos essenciais na
ação em todo o poema: o instrumento, o elemento modificador e a matéria a ser
modificada. A pá é o instrumento, o pé – o elemento modificador que é também o
ponto de equilíbrio, e o pó – que simbolicamente pode ser o resultado final de
tudo que sofre constantes mutações.
Em
“sermão da cria”, o primeiro elemento pode assumir três conotações: 1. Sermão – advertência; 2. O ser – que origina, o elemento
essencial; 3. a mão – com suas
múltiplas utilidades. Nesse contexto, no ser explorado são percebidos apenas o pé que transforma e a mão
que produz a safra. Independentemente da “várzea” que só produz ao “rés” da
“relva” e da “erva”, que impede o crescimento de tudo o que é plantado. “A
planta” pode representar o projeto de vida simbolizado pelo “sol”, o descanso
pelo “domingo” e a liberdade pelo “vôo”. “O
mapa vosso” pode significar a coisificação do ser submisso – “agacho dói
ao rés e relva, / a planta e o pé, o pó
e a terra”. O sermão pode ser interpretado como advertência ao ser anestesiado
pela dor (cãibra).
Na
interlocução entre “lavra e dor”, a dor se manifesta em gradação decrescente,
numa resposta semântica antagônica, ao “sol” que antes era um projeto de vida,
ao vôo - um sonho de liberdade, e dá vazão à raiva silente que aniquila a
“dor”, a “mão” e o “calo”. O ser se cala numa dor surda e, resignado espera a
paz que só se encontra no retorno ao pó – após a morte.
IV. Das intertextualidades
temáticas
A
intertextualidade entre “Lavra Dor”, de Mario Chamie, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto e “João Boa
Morte, cabra marcado para morrer”, de Ferreira Gullar evidencia-se de forma
contundente pela forte carga semântica e o jogo imagético que apresentam,
legitimando-se pela contextualização histórica – entre 1956 e 1965. Período de
surgimento d’As ligas Camponesas que deram origem ao Movimento dos Sem Terra, o
MST, no Brasil.
Os
textos mencionados denunciam o problema da fome, da miséria, da exploração da
mão-de-obra, enfim, da violência contra o homem do campo – o sertanejo de “vida
severina”. Essa vida inóspita do “lavrador” explorado pelo patrão, metaforizado
em “Lavra Dor” pela “mó” – grande pedra do moinho que pode comparar-se a
opressão – que resulta na dor, numa raiva silente que esvazia a vida; pelo
esforço, sem resultado de lavrar uma terra que não lhe pertence. E que certamente,
só lhe pertencerá depois de sua reintegração total a ela, com a morte, pois em
vida essa terra só lhe oferece sua aridez.
Pode-se
destacar alguns fragmentos especiais em Morte
e Vida Severina: no início quando Severino se faz apresentar “...E somos
muitos Severinos / iguais em tudo na vida / morremos de morte igual / mesma
morte severina: / que é a morte de quem morre / de velhice antes dos trinta /
de emboscada antes dos vinte / de velhice antes dos trinta / de fome um pouco
por dia...”, e quando o retirante assiste ao funeral de um lavrador do eito,
confirmando então, sua apresentação inicial quando nomeia as causas-mortis. A “pá”, que o “lavrador”
utiliza para remover o “pó” (a terra) e cavar a sepultura – “a cova” – para
devolver-lhe o “corpo parco” “...e agora
se abre, o chão te abriga / lençol que não tiveste em vida.
Percebe-se
também que o que impede o crescimento do que é plantado - os ideais de direito
a terra pela justa divisão (Reforma Agrária), a liberdade de plantar e colher -
, são a “várzea”, a “erva” ou “planta de rapina” que nos três textos podem ser
substituídos pela opressão – “onde o ganho alastra eu perco” – do
latifundiário.
Tal
opressão é marcante em todo o poema de Ferreira Gullar: o engodo, a humilhação,
a falta de respeito do homem que leva uma “vida severina”, esperando talvez uma
“boa morte, porque vida ele não tinha”. “Boa morte” que pode significar a
libertação das amarras da “mó” – do moinho – que aniquila, pois o lucro do
proprietário representa perdas para o trabalhador, que de claro só tem a fome
que acabrunha.
“Cabra
marcado pra morrer” segue as linhas gerais da literatura de cordel e representa
uma fase de produção de Ferreira Gullar ideologicamente comprometida e
esteticamente determinada pelas necessidades do momento - as Ligas Camponesas.
O poema está situado nesse contexto, datado de 1962.
“Morte
e Vida Severina”, publicado em 1956, retrata a condição do retirante
nordestino, um dos “muitos severinos iguais em tudo e na sina...”, que foge da
seca e da miséria. Partindo em direção à “vida” (Recife), trilhando o leito
seco da “morte” metaforizado pela seca do rio Capibaribe.
O
signo linguístico pode ser considerado um campo minado de ideias. A essas
ideias cabe ao leitor dar-lhes sentido, empregando a palavra ou reinventando-a
como fazia Guimarães Rosa. Para acontecer esse desvendamento polissêmico do
signo, realizam-se verdadeiras viagens intertextuais.
Retomando
à palavra norteadora deste artigo, - lavrador - , e às ideias definidoras da
Poesia Práxis, às viagens intertextuais aqui realizadas e a outras
possibilidades de leitura, conclui-se, portanto, que como organismo vivo que é,
a palavra é vulnerável, podendo ser transformada, não só ao gosto e interesse
do autor como também ao trabalho de coautoria do leitor.
Referências
BOSI,
Alfredo. História Concisa da Literatura
Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
CANDIDO,
Antonio. Na sala de aula – caderno de
análise literária. São Paulo: Ática, 1995.
CHAMIE,
Mário. Lavra Lavra. São Paulo: Massao
Ohno, 1962.
GULLAR,
Ferreira. Toda Poesia. Rio de Janeiro: Civilização, 1980
NETO,
João Cabral de Mello. Obra completa – volume
único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
RAMOS,
Maria Luiza. Interfaces –Literatura
Mito Inconsciente Cognição. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2000.
TELES,
Gilberto Mendonça. A Escrituração da
Escrita – teoria e prática de leitura. Petrópolis: Vozes: 1996.
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