quinta-feira, 11 de abril de 2013

Leitura semiótica do poema rural "Lavrador"


Leitura semiótica do poema Rural “Lavra Dor”, de Mário Chamie
                                                                                 Tereza Ramos de Carvalho[1]
Introdução
Escrito em 1962, o poema rural “Lavra Dor” ilustra a chamada Poesia Práxis que, de início foi uma ruptura polêmica e agressiva com o grupo concretista. Este surgimento, em 1956, com a Revista Noigandres - o primeiro movimento a refletir, em forma  e conteúdo, as mudanças que a industrialização acelerada vinha causando, sobretudo na vida urbana. Seus criadores, poetas paulistas Décio Pignatári e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, queriam produzir uma poesia à altura da sociedade moderna, na qual os signos da técnica fossem valorizados de modo crítico. Para eles a comunicação não se faz no nível do tema, mas na própria estrutura verbi-voco-visual (semântico, sonoro e visual). Dessa forma a poesia concreta transforma-se em objeto, que não representa sentimentos ou emoções, mas torna presente a realidade em si do poema.
A poesia Práxis rompeu com o grupo concretista, por volta de 1961, e teve como seu principal representante o poeta  Mário Chamie, que junto ao veterano Cassiano Ricardo pesquisou uma “nova estrutura” para o poema. Em 1962, Chamie publica o livro “Lavra Lavra”, que representou a grande abertura para a poesia práxis. Esta em vez de considerar a “palavra-coisa”, considera a “palavra-energia”, isto é, aquela que gera outras palavras no contexto do poema. Para os adeptos da Práxis, o poema não é mais um objeto concreto, fechado, mas uma matéria transformável; as palavras são organismos vivos. A práxis representa a retomada da importância do conteúdo.

Poema Rural “Lavra Dor”, de Mário Chamie
                        I
Lavra: Onde tendes pá, o pé e o pó
           Sermão da cria: tal terreiro.
Dor:    onde tenho o pó, o pé e a pá.
           Quinhão da via: tal meu meio
           De plantar sem água e sombra.
Lavra: Onde está o pó tendes cãibra;
          Agacho dói ao rés e relva.
Dor:   onde jaz o pó, tenho a planta
           Do pé e milho junto à graça
           Do ar de maio, um ar de cheiro.
Lavra: A planta, e o pé, e o pó, e a terra;
           O mapa vosso; várzea e erva.
                           II
Dor:   onde o ganho alastra eu perco.
           Perde o mapa como a cor, fina réstea
           De amanho em nós, nossa rédea
           De luz lastro em casa, o raso
           Nosso e a fome clara e verga
           O corpo onde o ganho alastra.
Lavra: a planta e o mapa, pó e safra
Dor:    onde a morte perde, em ganho.
           Ganha a casa amor, o pouco
           De amanho em nós, já redobra
           De paz aura em casa, o raso
           Nosso e a fome cava cede
           Ao corpo, onde a morte perde.
Lavra: mapa vosso, várzea e erva,
           Domingo e sol um vôo narra.
                      III
Dor:   Onde é a mó, mais moeda má,
           ardendo, ardente ira, nós
           o veio, nosso sangue, vaza.
Lavra: mapa vosso, várzea e safra.
Dor:    onde é o pó, cultivo raia
           pó de arroz outona. Acelera
           o sol não o vôo mas a raiva
           nossa, lenta mó que esmaga
           a lavra a dor, a mão e o calo.
           E orando, aramos, sem sombra
           se arados somos
                                no valo.
II. Do título
EmLavra Dor” o poeta transforma o nome simples, lavrador, numa palavra composta, ou seja, o poeta utiliza-se de um arranjo semântico para fazer uma releitura da palavra. Processo de transmutação analógica.
Morfologicamente, lavrador tem apenas um radical lavra, dor  é um morfema derivacional. Metamorfoseando-a temos três palavras que ganham existência própria, cada uma com uma carga semântica  independente mas que interrelacionam-se como cúmplices: lavrador, deverbal de lavrar, do latim laborare que significa aquele que trabalha na lavoura; lavra,  trabalho do lavrador e a dor que é uma sensação desagradável, variável em extensão e localização, como resultado do esforço na lavra. Analogia semântico-morfológica.
III. Da construção do poema  
Mário Chamie define alguns procedimentos da poesia práxis:
·         Todo problema tem suas palavras;
·         Cada palavra tem seu centro de energia e seu vocabulário;
·         Todo vocabulário de uma palavra tem suas relações em níveis sintático, semântico e pragmático;
·         A linguagem produz a informação;
·         A informação é estética e semântica, mais estética e menos semântica, segundo maior ou menor eficiência  do trabalho de co-autoria do leitor.
No poema em estudo, “Lavra Dor”, o poeta vincula a palavra e o contexto extralingüístico partindo de área externa, procurando, através de elementos sensíveis, todos os significados e contradições possíveis, que lhe conferem realidade e existência.
O autor registra alternadamente a ação “lavra’ e o efeito “dor”, dando-nos uma informação mais semântica do que estética pela forte carga significativa apresentada em seu conteúdo.
Na “lavra”, o discurso gira em torno de palavras-chaves, verdadeiros “organismos vivos” com relações em níveis semântico, sintático e, essencialmente pragmático numa espécie de diálogo travado com a “dor”. (observar os tempos verbais).
Lavra: onde tendes , o e o
           Sermão da cria: tal terreiro.
Lavra: onde está o tendes cãibra;
           Agacho dói ao rés e relva
Lavra: a planta e o mapa, pó e safra.
Lavra: mapa vosso, várzea e erva
           Domingo e sol um vôo narra.
Lavra: mapa vosso, várzea e safra.

Nas palavras “pá”, “pé”, “pó”, o autor utiliza a aliteração como recurso estilístico que (intencionalmente ou não) legitima os elementos essenciais na ação em todo o poema: o instrumento, o elemento modificador e a matéria a ser modificada. A pá é o instrumento, o pé – o elemento modificador que é também o ponto de equilíbrio, e o pó – que simbolicamente pode ser o resultado final de tudo que sofre constantes mutações.
Em “sermão da cria”, o primeiro elemento pode assumir três conotações: 1. Sermão – advertência; 2. O ser – que origina, o elemento essencial; 3. a mão – com suas múltiplas utilidades. Nesse contexto, no ser explorado são percebidos apenas o que transforma e a mão que produz a safra. Independentemente da “várzea” que só produz ao “rés” da “relva” e da “erva”, que impede o crescimento de tudo o que é plantado. “A planta” pode representar o projeto de vida simbolizado pelo “sol”, o descanso pelo “domingo” e a liberdade pelo “vôo”. “O  mapa vosso” pode significar a coisificação do ser submisso – “agacho dói ao rés e relva, /  a planta e o pé, o pó e a terra”. O sermão pode ser interpretado como advertência ao ser anestesiado pela dor (cãibra).
Na interlocução entre “lavra e dor”, a dor se manifesta em gradação decrescente, numa resposta semântica antagônica, ao “sol” que antes era um projeto de vida, ao vôo - um sonho de liberdade, e dá vazão à raiva silente que aniquila a “dor”, a “mão” e o “calo”. O ser se cala numa dor surda e, resignado espera a paz que só se encontra no retorno ao pó – após a morte.
IV. Das intertextualidades temáticas
A intertextualidade entre “Lavra Dor”, de Mario Chamie, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto e “João Boa Morte, cabra marcado para morrer”, de Ferreira Gullar evidencia-se de forma contundente pela forte carga semântica e o jogo imagético que apresentam, legitimando-se pela contextualização histórica – entre 1956 e 1965. Período de surgimento d’As ligas Camponesas que deram origem ao Movimento dos Sem Terra, o MST, no Brasil.
Os textos mencionados denunciam o problema da fome, da miséria, da exploração da mão-de-obra, enfim, da violência contra o homem do campo – o sertanejo de “vida severina”. Essa vida inóspita do “lavrador” explorado pelo patrão, metaforizado em “Lavra Dor” pela “mó” – grande pedra do moinho que pode comparar-se a opressão – que resulta na dor, numa raiva silente que esvazia a vida; pelo esforço, sem resultado de lavrar uma terra que não lhe pertence. E que certamente, só lhe pertencerá depois de sua reintegração total a ela, com a morte, pois em vida essa terra só lhe oferece sua aridez.
Pode-se destacar alguns fragmentos especiais em Morte e Vida Severina: no início quando Severino se faz apresentar “...E somos muitos Severinos / iguais em tudo na vida / morremos de morte igual / mesma morte severina: / que é a morte de quem morre / de velhice antes dos trinta / de emboscada antes dos vinte / de velhice antes dos trinta / de fome um pouco por dia...”, e quando o retirante assiste ao funeral de um lavrador do eito, confirmando então, sua apresentação inicial quando nomeia as causas-mortis. A “pá”, que o “lavrador” utiliza para remover o “pó” (a terra) e cavar a sepultura – “a cova” – para devolver-lhe o “corpo parco” “...e agora  se abre, o chão te abriga / lençol que não tiveste em vida.  
Percebe-se também que o que impede o crescimento do que é plantado - os ideais de direito a terra pela justa divisão (Reforma Agrária), a liberdade de plantar e colher - , são a “várzea”, a “erva” ou “planta de rapina” que nos três textos podem ser substituídos pela opressão – “onde o ganho alastra eu perco” – do latifundiário.         
Tal opressão é marcante em todo o poema de Ferreira Gullar: o engodo, a humilhação, a falta de respeito do homem que leva uma “vida severina”, esperando talvez uma “boa morte, porque vida ele não tinha”. “Boa morte” que pode significar a libertação das amarras da “mó” – do moinho – que aniquila, pois o lucro do proprietário representa perdas para o trabalhador, que de claro só tem a fome que acabrunha.
“Cabra marcado pra morrer” segue as linhas gerais da literatura de cordel e representa uma fase de produção de Ferreira Gullar ideologicamente comprometida e esteticamente determinada pelas necessidades do momento - as Ligas Camponesas. O poema está situado nesse contexto, datado de 1962.
“Morte e Vida Severina”, publicado em 1956, retrata a condição do retirante nordestino, um dos “muitos severinos iguais em tudo e na sina...”, que foge da seca e da miséria. Partindo em direção à “vida” (Recife), trilhando o leito seco da “morte” metaforizado pela seca do rio Capibaribe.
O signo linguístico pode ser considerado um campo minado de ideias. A essas ideias cabe ao leitor dar-lhes sentido, empregando a palavra ou reinventando-a como fazia Guimarães Rosa. Para acontecer esse desvendamento polissêmico do signo, realizam-se verdadeiras viagens intertextuais.
Retomando à palavra norteadora deste artigo, - lavrador - , e às ideias definidoras da Poesia Práxis, às viagens intertextuais aqui realizadas e a outras possibilidades de leitura, conclui-se, portanto, que como organismo vivo que é, a palavra é vulnerável, podendo ser transformada, não só ao gosto e interesse do autor como também ao trabalho de coautoria do leitor.

Referências
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
CANDIDO, Antonio. Na sala de aula – caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 1995.
CHAMIE, Mário. Lavra Lavra. São Paulo: Massao Ohno, 1962.
GULLAR, Ferreira. Toda Poesia.  Rio de Janeiro: Civilização, 1980
NETO, João Cabral de Mello. Obra completa – volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
RAMOS, Maria Luiza. Interfaces –Literatura Mito Inconsciente Cognição. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2000.
TELES, Gilberto Mendonça. A Escrituração da Escrita – teoria e prática de leitura. Petrópolis: Vozes: 1996.



[1] Professora Doutora em Literatura pela Universidade de Brasília – UnB.

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