quinta-feira, 18 de abril de 2013

O blog da leitura: Leitura semiótica do poema rural "Lavrador"

O blog da leitura: Leitura semiótica do poema rural "Lavrador": Leitura semiótica do poema Rural “Lavra Dor”, de Mário Chamie                                                                           ...

quinta-feira, 11 de abril de 2013

O Patinho Feio


Leitura semiótica do poema rural "Lavrador"


Leitura semiótica do poema Rural “Lavra Dor”, de Mário Chamie
                                                                                 Tereza Ramos de Carvalho[1]
Introdução
Escrito em 1962, o poema rural “Lavra Dor” ilustra a chamada Poesia Práxis que, de início foi uma ruptura polêmica e agressiva com o grupo concretista. Este surgimento, em 1956, com a Revista Noigandres - o primeiro movimento a refletir, em forma  e conteúdo, as mudanças que a industrialização acelerada vinha causando, sobretudo na vida urbana. Seus criadores, poetas paulistas Décio Pignatári e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, queriam produzir uma poesia à altura da sociedade moderna, na qual os signos da técnica fossem valorizados de modo crítico. Para eles a comunicação não se faz no nível do tema, mas na própria estrutura verbi-voco-visual (semântico, sonoro e visual). Dessa forma a poesia concreta transforma-se em objeto, que não representa sentimentos ou emoções, mas torna presente a realidade em si do poema.
A poesia Práxis rompeu com o grupo concretista, por volta de 1961, e teve como seu principal representante o poeta  Mário Chamie, que junto ao veterano Cassiano Ricardo pesquisou uma “nova estrutura” para o poema. Em 1962, Chamie publica o livro “Lavra Lavra”, que representou a grande abertura para a poesia práxis. Esta em vez de considerar a “palavra-coisa”, considera a “palavra-energia”, isto é, aquela que gera outras palavras no contexto do poema. Para os adeptos da Práxis, o poema não é mais um objeto concreto, fechado, mas uma matéria transformável; as palavras são organismos vivos. A práxis representa a retomada da importância do conteúdo.

Poema Rural “Lavra Dor”, de Mário Chamie
                        I
Lavra: Onde tendes pá, o pé e o pó
           Sermão da cria: tal terreiro.
Dor:    onde tenho o pó, o pé e a pá.
           Quinhão da via: tal meu meio
           De plantar sem água e sombra.
Lavra: Onde está o pó tendes cãibra;
          Agacho dói ao rés e relva.
Dor:   onde jaz o pó, tenho a planta
           Do pé e milho junto à graça
           Do ar de maio, um ar de cheiro.
Lavra: A planta, e o pé, e o pó, e a terra;
           O mapa vosso; várzea e erva.
                           II
Dor:   onde o ganho alastra eu perco.
           Perde o mapa como a cor, fina réstea
           De amanho em nós, nossa rédea
           De luz lastro em casa, o raso
           Nosso e a fome clara e verga
           O corpo onde o ganho alastra.
Lavra: a planta e o mapa, pó e safra
Dor:    onde a morte perde, em ganho.
           Ganha a casa amor, o pouco
           De amanho em nós, já redobra
           De paz aura em casa, o raso
           Nosso e a fome cava cede
           Ao corpo, onde a morte perde.
Lavra: mapa vosso, várzea e erva,
           Domingo e sol um vôo narra.
                      III
Dor:   Onde é a mó, mais moeda má,
           ardendo, ardente ira, nós
           o veio, nosso sangue, vaza.
Lavra: mapa vosso, várzea e safra.
Dor:    onde é o pó, cultivo raia
           pó de arroz outona. Acelera
           o sol não o vôo mas a raiva
           nossa, lenta mó que esmaga
           a lavra a dor, a mão e o calo.
           E orando, aramos, sem sombra
           se arados somos
                                no valo.
II. Do título
EmLavra Dor” o poeta transforma o nome simples, lavrador, numa palavra composta, ou seja, o poeta utiliza-se de um arranjo semântico para fazer uma releitura da palavra. Processo de transmutação analógica.
Morfologicamente, lavrador tem apenas um radical lavra, dor  é um morfema derivacional. Metamorfoseando-a temos três palavras que ganham existência própria, cada uma com uma carga semântica  independente mas que interrelacionam-se como cúmplices: lavrador, deverbal de lavrar, do latim laborare que significa aquele que trabalha na lavoura; lavra,  trabalho do lavrador e a dor que é uma sensação desagradável, variável em extensão e localização, como resultado do esforço na lavra. Analogia semântico-morfológica.
III. Da construção do poema  
Mário Chamie define alguns procedimentos da poesia práxis:
·         Todo problema tem suas palavras;
·         Cada palavra tem seu centro de energia e seu vocabulário;
·         Todo vocabulário de uma palavra tem suas relações em níveis sintático, semântico e pragmático;
·         A linguagem produz a informação;
·         A informação é estética e semântica, mais estética e menos semântica, segundo maior ou menor eficiência  do trabalho de co-autoria do leitor.
No poema em estudo, “Lavra Dor”, o poeta vincula a palavra e o contexto extralingüístico partindo de área externa, procurando, através de elementos sensíveis, todos os significados e contradições possíveis, que lhe conferem realidade e existência.
O autor registra alternadamente a ação “lavra’ e o efeito “dor”, dando-nos uma informação mais semântica do que estética pela forte carga significativa apresentada em seu conteúdo.
Na “lavra”, o discurso gira em torno de palavras-chaves, verdadeiros “organismos vivos” com relações em níveis semântico, sintático e, essencialmente pragmático numa espécie de diálogo travado com a “dor”. (observar os tempos verbais).
Lavra: onde tendes , o e o
           Sermão da cria: tal terreiro.
Lavra: onde está o tendes cãibra;
           Agacho dói ao rés e relva
Lavra: a planta e o mapa, pó e safra.
Lavra: mapa vosso, várzea e erva
           Domingo e sol um vôo narra.
Lavra: mapa vosso, várzea e safra.

Nas palavras “pá”, “pé”, “pó”, o autor utiliza a aliteração como recurso estilístico que (intencionalmente ou não) legitima os elementos essenciais na ação em todo o poema: o instrumento, o elemento modificador e a matéria a ser modificada. A pá é o instrumento, o pé – o elemento modificador que é também o ponto de equilíbrio, e o pó – que simbolicamente pode ser o resultado final de tudo que sofre constantes mutações.
Em “sermão da cria”, o primeiro elemento pode assumir três conotações: 1. Sermão – advertência; 2. O ser – que origina, o elemento essencial; 3. a mão – com suas múltiplas utilidades. Nesse contexto, no ser explorado são percebidos apenas o que transforma e a mão que produz a safra. Independentemente da “várzea” que só produz ao “rés” da “relva” e da “erva”, que impede o crescimento de tudo o que é plantado. “A planta” pode representar o projeto de vida simbolizado pelo “sol”, o descanso pelo “domingo” e a liberdade pelo “vôo”. “O  mapa vosso” pode significar a coisificação do ser submisso – “agacho dói ao rés e relva, /  a planta e o pé, o pó e a terra”. O sermão pode ser interpretado como advertência ao ser anestesiado pela dor (cãibra).
Na interlocução entre “lavra e dor”, a dor se manifesta em gradação decrescente, numa resposta semântica antagônica, ao “sol” que antes era um projeto de vida, ao vôo - um sonho de liberdade, e dá vazão à raiva silente que aniquila a “dor”, a “mão” e o “calo”. O ser se cala numa dor surda e, resignado espera a paz que só se encontra no retorno ao pó – após a morte.
IV. Das intertextualidades temáticas
A intertextualidade entre “Lavra Dor”, de Mario Chamie, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto e “João Boa Morte, cabra marcado para morrer”, de Ferreira Gullar evidencia-se de forma contundente pela forte carga semântica e o jogo imagético que apresentam, legitimando-se pela contextualização histórica – entre 1956 e 1965. Período de surgimento d’As ligas Camponesas que deram origem ao Movimento dos Sem Terra, o MST, no Brasil.
Os textos mencionados denunciam o problema da fome, da miséria, da exploração da mão-de-obra, enfim, da violência contra o homem do campo – o sertanejo de “vida severina”. Essa vida inóspita do “lavrador” explorado pelo patrão, metaforizado em “Lavra Dor” pela “mó” – grande pedra do moinho que pode comparar-se a opressão – que resulta na dor, numa raiva silente que esvazia a vida; pelo esforço, sem resultado de lavrar uma terra que não lhe pertence. E que certamente, só lhe pertencerá depois de sua reintegração total a ela, com a morte, pois em vida essa terra só lhe oferece sua aridez.
Pode-se destacar alguns fragmentos especiais em Morte e Vida Severina: no início quando Severino se faz apresentar “...E somos muitos Severinos / iguais em tudo na vida / morremos de morte igual / mesma morte severina: / que é a morte de quem morre / de velhice antes dos trinta / de emboscada antes dos vinte / de velhice antes dos trinta / de fome um pouco por dia...”, e quando o retirante assiste ao funeral de um lavrador do eito, confirmando então, sua apresentação inicial quando nomeia as causas-mortis. A “pá”, que o “lavrador” utiliza para remover o “pó” (a terra) e cavar a sepultura – “a cova” – para devolver-lhe o “corpo parco” “...e agora  se abre, o chão te abriga / lençol que não tiveste em vida.  
Percebe-se também que o que impede o crescimento do que é plantado - os ideais de direito a terra pela justa divisão (Reforma Agrária), a liberdade de plantar e colher - , são a “várzea”, a “erva” ou “planta de rapina” que nos três textos podem ser substituídos pela opressão – “onde o ganho alastra eu perco” – do latifundiário.         
Tal opressão é marcante em todo o poema de Ferreira Gullar: o engodo, a humilhação, a falta de respeito do homem que leva uma “vida severina”, esperando talvez uma “boa morte, porque vida ele não tinha”. “Boa morte” que pode significar a libertação das amarras da “mó” – do moinho – que aniquila, pois o lucro do proprietário representa perdas para o trabalhador, que de claro só tem a fome que acabrunha.
“Cabra marcado pra morrer” segue as linhas gerais da literatura de cordel e representa uma fase de produção de Ferreira Gullar ideologicamente comprometida e esteticamente determinada pelas necessidades do momento - as Ligas Camponesas. O poema está situado nesse contexto, datado de 1962.
“Morte e Vida Severina”, publicado em 1956, retrata a condição do retirante nordestino, um dos “muitos severinos iguais em tudo e na sina...”, que foge da seca e da miséria. Partindo em direção à “vida” (Recife), trilhando o leito seco da “morte” metaforizado pela seca do rio Capibaribe.
O signo linguístico pode ser considerado um campo minado de ideias. A essas ideias cabe ao leitor dar-lhes sentido, empregando a palavra ou reinventando-a como fazia Guimarães Rosa. Para acontecer esse desvendamento polissêmico do signo, realizam-se verdadeiras viagens intertextuais.
Retomando à palavra norteadora deste artigo, - lavrador - , e às ideias definidoras da Poesia Práxis, às viagens intertextuais aqui realizadas e a outras possibilidades de leitura, conclui-se, portanto, que como organismo vivo que é, a palavra é vulnerável, podendo ser transformada, não só ao gosto e interesse do autor como também ao trabalho de coautoria do leitor.

Referências
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
CANDIDO, Antonio. Na sala de aula – caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 1995.
CHAMIE, Mário. Lavra Lavra. São Paulo: Massao Ohno, 1962.
GULLAR, Ferreira. Toda Poesia.  Rio de Janeiro: Civilização, 1980
NETO, João Cabral de Mello. Obra completa – volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
RAMOS, Maria Luiza. Interfaces –Literatura Mito Inconsciente Cognição. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2000.
TELES, Gilberto Mendonça. A Escrituração da Escrita – teoria e prática de leitura. Petrópolis: Vozes: 1996.



[1] Professora Doutora em Literatura pela Universidade de Brasília – UnB.

terça-feira, 26 de março de 2013

Literatura comparada - Ensaio para um ensaio


Dialogismo, intertexto - interfaces

Tereza Ramos de Carvalho*

De acordo com o dialogismo bakhtiniano[1] “um texto só ganha vida em contato com outro texto, com o contexto. Somente nesse contato entre textos é que uma luz brilha, iluminando tanto o posterior como o anterior, juntando dado texto a um diálogo”. Nesse dialogismo é possível perceber como cada texto é concebido: como um intertexto numa sucessão de textos já escritos ou que ainda serão escritos. Para Bakhtin[2], o acontecimento na vida do texto sempre sucede nas fronteiras entre a consciência do autor e a do leitor. Porque esse ato de criação só pode ser compreendido no contexto dialógico de seu tempo.

Daí a necessidade de conhecer a relação do conteúdo da obra com o mundo e a intervenção, (forma), do autor no ato da criação literária. Ou seja, para que se reconheça essas interfaces entre autor, obra, leitor e contexto é necessário que haja a contextualização tanto do autor para a criação literária, quanto do leitor para compreensão e análise do texto.

Ao estudar e reconhecer o diálogo existente entre diferentes autores e obras, Bakhtin coloca em pauta as discussões sobre interdependência textual, que passa a ser objeto de estudo mais bem observado. Antes de Bakhtin[3], questionava-se a eficácia das pesquisas científicas no domínio das ciências da linguagem, porque se estudava a língua a partir de suas unidades mínimas e fragmentadas em sons, palavras e orações, o que não era suficiente para compreender a linguagem como fenômeno social. A partir dos estudos bakhtinianos a compreensão desse fenômeno linguístico toma novo rumo, pois ele se despe das técnicas até então tidas como modelo e busca compreender a linguagem como um diálogo que ocorre no meio de enunciados ou enunciados reais da comunicação, que congrega em si a bagagem sociocultural de um povo. Para Bakhtin[4] todo texto se reporta a outros textos, todo discurso remete a outros discursos.

A partir das teorias bakhtinianas, a crítica francesa Julia Kristeva[5] desenvolve e introduz o conceito de intertextualidade na década de 1960. Para Kristeva cada texto constitui um intertexto numa sucessão de textos já escritos ou que ainda serão escritos.  E qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é absorção e transformação de outro texto. Assim reforçamos a ideia de que um texto sempre pode ser intertexto de outro, quer pela alusão ou pela rejeição. É essa alusão intertextual que torna possível o diálogo entre duas ou mais vozes e, ainda, entre dois ou mais discursos, tanto escritos quanto falados, que embora sendo pessoal, congrega em si várias opiniões pertencentes ao social. 

*Professora Drª em Literatura


[1] In: Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1986, pag. 162.
 [2] O problema do texto. In Estética da criação verbal, 1997. Pags. 326 a 337. Textos de arquivos (1959-1961), Não revisto pelo autor.
[3]In: Koch, Ingedore G. Villaça. Intertextualidade: diálogos possíveis.  2ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2008.
[4] O problema do texto, In: Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G. Pereira. São Paulo: Martins fontes, 1992.
[5]Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva: 1974, Citada por Koch, Ingedore G. Villaça. Intertextualidade: diálogos possíveis. pag. 14. 

Ensaio - literatura Brasileira


Ensaio
Introspecção confessional – enfrentamentos do narrador-personagem de Angústia, de Graciliano Ramos.
Tereza Ramos de Carvalho[1]

                                               



                                                     
 Bakhtin em seu ensaio “o autor e o herói” discute a relação do autor com o herói em sua arquitetônica estável e em sua dinâmica viva. Segundo Bakhtin, “todos os componentes de uma obra nos são dados através do que eles suscitam no autor. E a responsabilidade do leitor é o juízo de valor a todas as manifestações daqueles que o rodeiam, pois cada ato ou pensamento está ligado a outros pensamentos ou a pensamentos de outrem.”[2]
Já o desenvolvimento das características do herói depende das reações emotivo-volitivas do autor, que penetra no caos dos personagens para apresentar sua autêntica postura de valores e para estabilizar os rostos das personagens.[3]
Neste ensaio discuto a relação que se pode estabelecer entre autor e personagem de uma obra a partir da introspecção do personagem central de Angústia, Luis da Silva, que no seu bojo é uma obra confessional e, portanto, introspectiva. Para tanto busquei a teoria bakhtiniana e a obra de Antonio Candido, Ficção e confissão que discute os enfrentamentos do autor Graciliano Ramos, através dos personagens de suas obras, principalmente em Infância (1945), Angústia (1936), Caetés (1928) e Memórias do Cárcere (1953).
Angústia é um livro forte, e com uma narrativa psicológica densa, no entender de Sergius Gonzaga "um dos romances mais amargos da literatura brasileira”. A obra inicia com o despertar de um estágio profundo de letargia que domina o personagem Luís da Silva após cometer um crime, e termina nessa mesma atmosfera. O que completa um percurso cíclico, acentuado numa realidade que, apesar de apresentar um dinamismo vital, parece imóvel, se observarmos a velocidade com que tudo parece se totalizar:
O sino da Igrejinha bate a primeira pancada das ave-marias. Não, não é o sino da igreja, é o relógio da sala de jantar. Oito e meia. Preciso vestir-me depressa, chegar à repartição às nove horas. Apronto-me, calço as meias pelo avesso e saio correndo. Paro sobressaltado, tenho a impressão de que me faltam peças do vestuário. Assaltam-me dúvidas idiotas. Estarei à porta de casa ou já terei chegado à repartição? Em que ponto do trajeto me acho? Não tenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo, mas um segundo que parece uma eternidade.  Está claro que todo o desarranjo é interior. (Angústia pag. 22).

É como se o narrador observasse sua vida através de uma fotografia, ou de uma sequência de fotografias sobre angústia, tema central de sua narrativa. A figura de Luís da Silva por ser fragmentada assim como a narrativa de sua vida, vai se compondo à medida que sua subjetividade o delineia e mostra a relação que ele tem com mundo.
Ao personagem-narrador, Luis da Silva, o autor de sua história, Graciliano, demiurgo, concede livre arbítrio para que ele possa transitar e conviver no seu próprio caos.  Luís da Silva, ao contrário dos personagens de Dostoievski, por exemplo, apresenta uma gênese, uma causa, explicações do passado e das influências do meio. Cada atitude do personagem parece estar amarrada, presa a um trauma vivido no passado. 
O poço da pedra era uma piscina enorme. (...) Quando eu ainda não sabia nadar, meu pai me levava para ali, segurava-me um braço e atirava-me num lugar fundo. Puxava-me para cima e deixava-me respirar um instante. Em seguida repetia a tortura.  Com o correr  do tempo aprendi natação com os bichos e livrei-me disso. Mais tarde, na escola de mestre Antonio Justino, li a história de um pintor e um cachorro que morria afogado. Pois para mim era no poço da pedra que se dava o desastre. Sempre imaginei o pintor com cara de Camilo Pereira da Silva, e o cachorro parecia-se comigo. (Angústia. pag. 5).

Os espaços de Luís da Silva são demarcados por situações psicológicas complexas e por sua desagregação mental. Essas perturbações progressivas do herói, na medida em que avançam, deformam tanto o espaço do presente quanto do passado. Os motivos espaço-temporais plasmam as inquietações do ser fragmentado: o quintal da casa, a visão que ele tem da rua, do bar, da casa, da repartição... e o passado que é referido sempre através de lembranças da morte e da destruição: o enterro do pai, os afogamentos no poço da pedra, a morte de seu Evaristo enforcado em seu casebre, a cobra enrolada no pescoço de seu avô Trajano, a morte de Germana.  

Talvez por isso tenha sempre justificativas para suas atitudes. Luís da Silva é um personagem que vive em constante tensão psicológica e, em função de sua timidez e solidão, de sua capacidade mórbida de autoanálise, passa a viver entre as fronteiras de seus próprios abismos existenciais, a tal ponto que chega a sentir nojo de si mesmo.

_ Peste! Andei rolando no chão como um porco. (...) Senti a necessidade de lavar as mãos. Estava imundo e receava contaminar os objetos. (...) Fui ao banheiro, meti as mãos no balde de água e lavei-as, muito lentamente porque as feridas começavam a doer em demasia. Deitei fora a água, mergulhei o balde no tanque e recomecei a lavagem. (Angústia pag. 204).

Esse aspecto introspectivo do personagem é constante em todo o desenrolar do romance que é marcado por temporalidade tríplice: o presente que é fruto de acontecimentos distantes do passado - principalmente os da infância - que, segundo o herói, são completados por sua imaginação, aguçam seus desejos.

Ponho-me a vagabundear em pensamento pela vila distante, entro na igreja, escuto os sermões e os desaforos que padre Inácio pregava aos matutos: “arreda, povo, raça de cachorro com porco” (...), ouço as cantilenas dos sapos. Vejo a figura sinistra de seu Evaristo enforcado. Lembro–me de um fato, de outro fato anterior ou posterior ao primeiro, mas os dois vêm juntos. (...) Tudo empastado, confuso. (...) saíram do entorpecimento recordações que a imaginação completou. (...) Lá estão novamente gritando os meus desejos. Calam-se acovardados, tornam-se inofensivos.[4] (...) Um arrepio atravessa-me a espinha, inteiriça-me os dedos sobre o papel. (...). De repente surgiam vozes estranhas, ..., vozes que iam crescendo, monótonas e causavam medo. Um alarido, um queixume, clamor enorme, sempre no mesmo tom.  As ruas enchiam-se, a saleta enchia-se, e eu tinha a impressão de que o brado lastimoso saía das paredes. (...) a verdade  é que muitas vezes perguntei a mim mesmo se realmente ouvia aquele barulho grande, diferente dos outros barulhos. Perguntei naquele tempo, ou perguntei depois? Não sei. Tenho me esforçado para tornar-me criança. E em conseqüência misturo coisas atuais a coisas antigas. (Angústia. pags. 16 e 17).

Para Bakhtin (1997), o herói de uma obra, além de depender das emoções emotivo-volitivas do autor, é também parte, fragmento dele[5]. Nesse caso o herói pode ser considerado autobiográfico. Luís da Silva, na medida em que se propõe a narrar suas lembranças, principalmente as da infância e os fatos do passado recente, estabelece uma aproximação com o narrador de Infância, obra publicada nove anos após a publicação de Angústia. A impressão do leitor atento é de que o autor está presente no produto criado por ele.   Assim, pode-se afirmar que há uma contraditória coincidência entre o autor e o herói, pois por ser o autor uma parte integrante do todo artístico como tal, não poderia coincidir com o herói, que é também parte integrante do autor. Bakhtin (1997), afirma que o autor se situa muito próximo de seu herói, ‘parecem ser intercambiáveis nos lugares que ocupam respectivamente, e é por esta razão que é possível essa coincidência entre autor-escritor e personagem-autor.[6] O autor é o depositário da tensão exercida pela unidade de um todo acabado, o todo do herói e o todo da obra.  E a consciência do autor engloba e acaba a consciência do herói e do seu mundo, pois o autor vê e sabe mais do que o herói. E o discurso do herói está impregnado do discurso do autor-criador sobre o herói[7].
Podemos citar em Angústia vários exemplos desse intercâmbio herói x autor: se considerarmos a tonalidade ficcional de Infância na infância de Graciliano, as inquietações do herói podem ser consideradas uma refração ao herói de Angústia. Seus traços característicos, os episódios de sua vida, seus atos e pensamentos, sentimentos em relação aos outros e o seu juízo de valor a todos esses sentimentos.
Antonio Candido em Ficção e Confissão apresenta alguns elementos que confirmam as discussões de Bakhtin, e o elemento que parece ser a característica que mais aproxima o personagem Luís da Silva de seu autor-criador é que Graciliano dá-lhe “algo muito seu: a vocação literária”, apesar de apresentar uma “irritação permanente contra tudo o que escreveu”.[8] Segundo Candido, Luis da Silva é personagem criado com premissas autobiográficas; e Angústia, autobiografia potencial.  Quanto à atitude literária, Luís da Silva também apresenta esse potencial crítico à sua escritura; que pode ser comparado à postura de Graciliano:

Habituei-me a escrever, como já disse. Nunca estudei, sou um ignorante, e julgo que os meus escritos não prestam. Mas adquiri cedo o veio de ler romances e posso, com facilidade, arranjar um artigo, talvez um conto. Compus, no tempo da métrica e da rima, um livro de versos. Eram duzentos sonetos aproximadamente. Não me foi possível publicá-los, e com a idade compreendi que não valiam nada. (Angústia. pag. 45).

Outra atitude do autor Graciliano que o aproxima de seu herói Luis da Silva é sua “aversão, que vai da mal refreada birra ao ódio puro e simples pelos ricos, importantes, doutos, fariseus, homens dos vários graus de compromisso com a ordem estabelecida.” Uma espécie de projeção da sua náusea ante os livros de leitura do solene Barão de Macaúbas, de Infância.[9] E essa aversão é nutrida por Luis da Silva:

Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições, as duas colunas mal impressas, caixilho, dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor e secretário, tudo se move na minha cabeça como um monte de vermes, em cima de uma coisa amarela, gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara balofa de Julião Tavares aumentada. (Angústia. p. 9).    

A partir dessas considerações podemos pensar nos enfrentamentos das contradições do autor através de sua trajetória literária em Angústia:
O herói Luís da Silva é um personagem angustiado com marcas profundas daqueles que despertaram para a realidade, por terem sidos obrigados a isso, e perceberam, nesse despertar, a deformação dos valores do homem. Ao nomeá-lo como autor-narrador ou pseudoautor para seu texto, Graciliano retoma sua preocupação com o fazer literário, com o texto enquanto produção. A solidão do indivíduo e a dificuldade de um encontro satisfatório com outro ser humano deságuam na opção de escrever para sobreviver psicológica e materialmente. Vítima da opressão e, consciente disso, vende sua escritura, que assume os valores e os contornos do opressor. Sua liberdade criadora acha-se comprometida com artigos elogiosos, em jornais, a políticos e comerciantes sem escrúpulo. (“se me tivesse encomendado e pago um artigo de elogio...”). Luis da Silva vê-se como um objeto intelectual do mundo ao qual pertence.
Os sentimentos contraditórios de Luís da Silva – intelectual - são animados por uma antinomia: o privilégio e a miséria. Apesar do conhecimento intelectual e de sua consciência moral, ele não assumiu nenhuma posição político-social, fez concessões de tudo, e o que lhe restou foi a consciência angustiada de sentir-se alienado e vendido. Suas lembranças da infância e da adolescência ampliam-se para uma extensão vital e percorrem o texto a tal ponto sob formas obsedantes que levam o herói a destruir-se gradativamente.
Outro enfrentamento vivido pelo narrador é sua luta constante em busca do conhecimento de sua natureza contraditória. Tem uma visão pessimista do mundo que constrói o sistema de valores e, assim como Graciliano, generaliza o drama individual, levando-o ao âmbito das relações sociais, aniquiladora das possibilidades do homem. Esse enfrentamento, reflexo das relações familiares repressivas e violentas, leva Luís da Silva a submeter suas relações posteriores com o outro a processos de fuga na qual o confronto com a realidade é motivo para humilhação, tanto que seu “mundo desaba sempre que a realidade lhe entra pelos olhos”.
Outro enfrentamento do autor diz respeito ao contexto em que está inserido o Nordeste agrário e as relações problemáticas entre senhor e escravos. A decadência dos engenhos, o complexo econômico agora unido às situações sociológicas implícitas que sintetiza ficcionalmente a desagregação social e a degradação do indivíduo desce ao patamar da zoomorfização. A ponto de Graciliano construir um universo zoológico inferiorizante que pode ser comparado à diminuição da humanidade: rato, sururu, ratuínos, coruja, cobra vão ganhando espaço nesse universo no qual a luta pela sobrevivência substitui valores humanos.
Graciliano ainda traz para o espaço urbano um personagem em trânsito do meio rural, assim atinge, depois de São Bernardo e, posteriormente em Vidas Secas, os problemas do Nordeste. Nesse contexto apresenta Luís da Silva, um indivíduo dominado por obsessões infantis, social e afetivamente oprimido, num ambiente em que a predominância do dinheiro – ou da falta dele – mantém o herói numa tensão continuada, acentuando ainda mais suas antinomias: um ser intelectualmente privilegiado que lança-se num caminho errado e vislumbra a solução na morte de Julião Tavares e na destruição de todas as qualidades desagradáveis que o intimidavam. A morte de Julião pode representar a morte dos valores burgueses que, segundo Candido é “surdamente desejada” nas obras de Graciliano Ramos.
Retomando à proposta inicial deste ensaio que é discutir a relação que se pode estabelecer entre autor e personagem de uma obra a partir da introspecção do personagem central de Angústia, pode-se afirmar que as inquietações do personagem-narrador confundem-se, ou apresentam características comuns às do narrador de Infância.  Nas palavras de Candido, “parece que Angústia contém muito de Graciliano Ramos, tanto no plano consciente (pormenores biográficos), quanto no inconsciente (tendências profundas, frustrações) representando a sua projeção pessoal até a mais completa no plano da arte.” Não se pode confundir Graciliano Ramos com Luís da Silva, mas Luís pode representar o resultado do que foi reprimido em Graciliano.[10] Nesse sentido podemos dizer que o herói de Angústia, Luis da Silva, subjetivo, nasce a partir das evoluções emotivo-volitivas do autor e se concretiza a partir da materialidade objetiva do texto.


Referências
BAKHTIN, Mikhail. “O autor e o Herói” In A estética da Criação Verbal. Tradução a partir do Francês - Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão – Ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34.

RAMOS, Graciliano. Angústia: posfácio de Otto Maria Carpeaux, ilustrações de Marcelo Grasmam. 48ª Ed. Rio, São Paulo, 1998, 240 pag.

RAMOS, Graciliano - Fortuna Críticas; coletânea organizada por Sônia Brayner. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 315 pag.



[1] Professora Mestre e Doutora em Literatura pela Universidade de Brasília - UnB.
[2] BAKHTIN, Mikhail. “O autor e o Herói” In A estética da Criação Verbal. Tradução a partir do Francês - Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
[3] Ibidem
[4] Grifo nosso.
[5] Idem.  p.  28
[6] Idem. p 166.
[7] Idem. p. 32
[8] CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão – Ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34.  p. 42
[9] CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão – Ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34.- p. 43
[10]  CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão. Pág. 44.